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15.8.19

[Resenha] O Olho Mais Azul :: Toni Morrison

O Olho Mais Azul
Autora: Toni Morrison
Editora: TAG - Experiências Literárias | Companhia das Letras
Páginas: 222
Skoob  | Goodreads | Amazon 
Como aceitar sua identidade num mundo que não parece ter sido feito para você?
Todas as noites, Pecola Breedlove reza para ter olhos azuis. Zombada pelas outras crianças por sua pele negra e seu cabelo crespo, a menina anseia por se encaixar no padrão de beleza da sociedade americana dos anos 1940: quer ser branca e loira, assim como a atriz mirim Shirley Temple. No entanto, à medida que cresce seu delirante e inconsciente desejo de aceitação, Pecola se vê presa a uma realidade cada vez mais violenta. Primeiro romance de Toni Morrison, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 1993, O olho mais azul é uma poderosa reflexão sobre raça, desigualdade e o peso esmagador da história.

Há exatos dez dias perdemos uma mulher incrível; como se não bastasse a tristeza de ler seu igualmente fantástico livro de estreia. Toni Morrison. Mulher. Negra. A primeira a receber o nobel de literatura. E cabe aqui nossos sentimentos e homenagens. 

O olho mais azul, publicado originalmente em 1970, foi o livro enviado pela TAG - Experiências Literárias no mês de março deste ano, sob a curadoria de Djamila Ribeiro. A obra estava fora de catalogação e se tornou um resgate fundamental, haja vista a situação política-social do país e claro, a muito sentida perda da autora que ocorreu cinco meses após. Vale destacar o ótimo projeto gráfico feito pelo clube, impecável como sempre. 

A trama se passa em Lorain, uma cidade do estado de Ohio nos EUA - onde também nasceu Toni Morrison - e tem como personagem principal Pecola, uma garota de doze anos. Negra. Feia (?) que deseja possuir olhos azuis a qualquer custo. Desejo esse, fruto de constantes rejeições por parte da sociedade e da própria família. Sua mãe Pauline, trabalha como empregada doméstica e todo seu amor negado a filha é direcionado ao modo de vida e família branca para o qual trabalha. Seu pai Cholly, é alcoólatra, sempre trabalhador, gasta tudo que tem com bebidas e despeja suas frustrações na esposa e filha. Pecola é introvertida, acanhada e de fisionomia triste. Shirley Temple, atriz mirim, branca, loira e de olhos claros, padrão de beleza da época - de sempre - é sua maior inspiração. 

                                                 
                                                    Shirley Temple; atriz mirim de Hollywood da década de 1940

Apesar de ser a protagonista temos pouco contato direto com Pecola que quase não fala. Aqui, a narradora é uma outra garota, Cláudia, que assim como Pecola é Negra e sofre com violências. Porém, esta tem todo o suporte e apoio que a primeira não tem, além de ser uma voz ativa e ter o olhar consciente sobre a força destrutiva da segregação. Dessa forma, o livro é fracionado e somos apresentados a diferentes perspectivas de uma mesma realidade. Esse fato me remeteu ao livro "O alforge" de Bahiyyih Nakhjavani também enviado pela TAG no mês de fevereiro do ano passado. Mas, diferentemente deste, em O olho mais azul o "objeto misterioso" é sem dúvidas muito mais destrutivo. E nesse sentido, empresto as ideias de Foucault para abordar um tema que pela própria etimologia da palavra sugere destruição. O poder. 

Michel Foucault foi um filósofo, sociólogo, professor [...] francês que estudou a fundo as estruturas do poder. Para ele, não existe poder institucionalizado, um objeto preexistente em um soberano, que o usa para dominar seus súditos; não está no rei, no presidente ou no Estado, está sim, nas relações sociais existentes. Trata-se de uma prática social construída historicamente que atua oprimindo, disciplinando e controlando os indivíduos. Desse modo, conforme a sociedade evolui e mudam-se as relações políticas-sociais e econômicas novas relações de poder são introduzidas se adequando às necessidades do poder dominante. E aqui me detenho em Foucault para voltar ao livro. 

Conforme fui me afunilando na leitura, percebi que as questões postas pela autora não eram apenas de ordem racial e estética. Claro, ambos são temas centrais e de suma importância para se fazer entender a trama; porém, havia algo a mais, algo não palpável e intrincado que permeia toda relação social. Foi quando me lembrei de Foucault. Morrison quer nos mostrar o poder destrutivo dos padrões sociais. Seja o padrão de beleza, o padrão de hierarquia familiar, o padrão da superioridade racial, do machismo. Os padrões impostos e que são capazes de destruir qualquer pessoa. Doravante, presenciamos diversos tipos de violências ao longo do livro; de brancos sobre Negros, homens sobre mulheres, pai sobre mãe, pais sobre filhos, beleza sobre não beleza, rico sobre pobre, etc. Entenda que esses padrões são linhas invisíveis emaranhadas nas relações; é a estrutura do poder preconizada por Foucault. Na página 84 após um incidente envolvendo Pecola e uma garota rica, mulata de cabelo castanho e comprido de sua escola a narradora Cláudia, a única me parece, minimamente consciente percebe: "E o tempo todo sabíamos que Maureen Peal não era o Inimigo e não merecia ódio tão intenso. A Coisa a temer era a Coisa que tornava bonita a ela e não a nós". O que chamo de padrões ela chama de Coisa. 

É nesse sentido que a leitura deste livro se torna difícil, porque toca naquilo que frequentemente negamos ou preferimos ignorar. E também por conta de toda violência ali posta. Que gera angústia, desconforto e ódio. Há cenas de estupro, agressões físicas e verbais. E a tristeza que engole Pecola, constantemente rejeitada é realmente colérico. Porém, parte deste ódio é sublimado pela maestria de Morrison em humanizar as personagens, sim, até mesmo Cholly que estupra a própria filha. Quando disse, mais acima, que o livro é fracionado é justamente pelo fato de termos acesso à história de vida desses. O passado dos pais de Pecola é igualmente trágico, afinal, também são negros. A autora é gigante em tentar incutir empatia em nós. Em momento algum ela culpabiliza os agressores - sem desculpabilizá-los - ela tenta, na verdade, entender o porque de agirem como agem. E é muito eficaz, pois, é horrível saber que indivíduos bons em algum momento de suas vidas corrompem-se pela impossibilidade de viver e sentir o mundo como todos os outros. E eu me pergunto: por que ser negro é ser sujo? por que cabelo enrolado é feio? por que mulher é "fraquejada"? É o sistema dominante. É o poder. E quanto à isso só nos resta lutar, resistir. 

Sonho com o dia em que o padrão de beleza seja a generosidade e o respeito; que hierarquia seja apenas uma palavra extinta; que mulheres e negros tenham as mesmas oportunidades e que o poder dominante seja o amor. O livro se passa na década de 40 e continua muito atual. Estamos tão distantes do que devemos ser? "Seremos mais ao menos Ser"? 

R.I.P. - Toni Morrison (1931 - 2019)


comentários pelo facebook:

17 comentários

  1. Nossa, que resenha é essa?! Fiquei impactada com a sua análise da obra e adorei ter podido conhecer um pouco mais do impacto dessa obra pelo teu olhar, Pedro. É nítido que é uma obra de grande peso e a Toni Morrison deixa grande perda no espaço literário enquanto suas obras manterão vivos os ideias e críticas da autora.

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    1. Que bom que gostou, Andréia!! Com certeza é uma perda inestimável, porém ela continuará com nós, ainda que de forma simbólica, através de suas obras. Abraço!!

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  2. Oiiii,

    Eu nunca tinha ouvido falar deste livro, mas já quero para ontem! Quando eu li o título e vi a capa eu jamais imaginaria que se trata de uma história com um cunho social tão importante, nem com uma realidade tão cruel. Quero muito conhecer a escrita da autora e conferir um pouco mais sobre esta triste realidade que infelizmente se perpetua ao longo dos anos. Obrigada pela dica.

    Beijinhos...
    http://www.equipenerd.com.br

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    1. Olá!

      Olha, vale muito a pena este livro. Também é um desejo meu ler outras obras da autora. Sua escrita é muito pertinente para os nossos tempos. Um abraço, agradeço pelo comentário!

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  3. Meu Deus do céu! Que resenha incrível! Parabéns! Além de muito bem escrita, nos faz refletir e nos provoca dor, dando toda uma visão das partes essenciais do livro. Sem sombra de dúvidas, é um livro forte e que precisarei ler só quando realmente estiver preparada, se é que é possível estar preparada para uma leitura tão densa, tão dolorosa.

    Situações que se passaram quase um século atrás, infelizmente ainda são muito atuais. Por vezes, sobretudo neste cenário social e político do Brasil, tenho a sensação de que estamos regredindo. Que andamos para trás ao invés de evoluirmos. Não era mais para existir tanto preconceito, tanta discriminação, tanto machismo e violência, mas em vez de diminuir, aumenta. É muito triste e desesperador.

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    1. Muito obrigado, Luna! De fato, é recomendável lê-lo não num momento de fragilidade. Ele abala nossas estruturas, é preciso, acima de tudo, capacidade para se reerguer, resiliência. Abraço!!

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  4. Oi, tudo bem? Que resenha mais incrível. Além de não conhecer o livro já fiquei curiosa para saber mais sobre as reflexões que ele levanta. Interessante perceber que algo que aconteceu a tanto tempo, mesmo que seja fictício, continue tão atual como o preconceito e as minorias. Quando eu era criança também já quis ter olhos azuis, achava tão lindo. Só nunca quis ser loira haha Um abraço, Érika =^.^=

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    1. haha Obrigado, Erika! Muitas vezes internalizamos as imposições sociais e isso nos impede, muitas vezes, de encontramos nossa essência. Um forte abraço!

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  5. A temática é realmente fantástica e traz a pessoa a diversas reflexões. Que leitura densa, porém necessária! Adorei saber da existência desse livro. Fantástico o seu post.
    Abração

    Carol, do Coisas de Mineira

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    1. Este livro precisa ser lido por todos, de fato. Muito obrigado, Carol! Abraço

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  6. Oii tudo bem ?
    Não conhecia a história é agradeço por ter trazido essa resenha incrível.
    Esse livro parece bem interessante e deve ser lido ainda bem q a tag trouxe ele. Vou procurar pra ver se eu leia fiquei curiosa com a trama.


    Bjs

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    1. Leia! Com certeza sua mente irá se abrir para várias questões. Sairá da leitura como uma nova pessoa. Obrigado pela presença. Abraço!!

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  7. Oi! Eu não conhecia o livro ou a autora até ler sobre sua morte. Infelizmente não tive a oportunidade de ler antes, mas lendo essa resenha, com certeza esse livro entrou na lista de leituras necessárias. É tão triste ler sobre uma criança que se acha feia e que quer ser parecida com aquela linda da tv. Isso não deveria acontecer de jeito nenhum, todas as pessoas, com suas cores, formas e tamanhos e jeitos deveriam ser considerados lindos. Infelizmente nossa sociedade ainda tem muito que evoluir nesse quesito. Obrigada pela resenha!

    Bjoxx ~ Aline ~ www.stalker-literaria.com ♥

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    1. Exatamente, Aline. Existe por trás disso tudo uma cultura que nos impõe regras e sem perceber a internalizamos. Por isso a necessidade de ler esta obra, nos ajuda a desprendermos desses padrões. Eu que agradeço a presença. Abraço!!

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  8. Já quis ter olho azul. Acho que depois de ler isso, vou sempre me lembrar dessa resenha quando estiver insatisfeita com minha aparência. Já vai pra minha listinha de livros que preciso ler, rs.

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  9. O Olho Mais Azul está na minha lista há um tempo,mas venho postergando porque esse tipo de leitura me afeta demais.
    Enfim,resenha maravilhosa!

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  10. Li o livro. Maravilhoso. Sua resenha foi perfeita. Muito obrigada.

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