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14.7.20

[Desmistificando a literatura russa] #1 :: Liev Tolstói - Felicidade Conjugal




    




Felicidade Conjugal
Autora: Lev Tolstói
Editora: Editora34
Páginas: 128
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Publicada em 1859, quando o escritor tinha pouco mais de trinta anos, felicidade conjugal é talvez a primeira obra-prima de Lev Tolstói e prenuncia um tema que terá importância fundamental na vida do autor russo - o tema do desejo, neste caso apreendido do ponto de vista feminino.  Com um talento incomum para descrever os estados de alma de suas personagens, Tolstói põe em destaque a figura da jovem e bela Mária, que narra as várias etapas de sua vida amorosa, desde o primeiro despertar dos sentidos até o momento em que, tendo experimentado por si mesma o absurdo da existência, ela pode, enfim, voltar à própria vida. Combinando sutileza e gravidade, o "observador genialmente perspicaz" que foi Tolstói - segundo as palavras de Boris Schnaiderman, que assina a tradução, as notas e o posfácio - escreveu uma novela em que "o humano e o literário encontram o seu máximo de expressão".

Desmistificando a literatura russa é o nome que escolhi para uma série de resenhas que, sob minha perspectiva e curadoria, nasce com a pretensão de ajudar o leitor que se interessa em iniciar nesse universo da literatura russa tão multifacetado e característico, mas que por alguns motivos tem medo ou receio de ler, a desfazer-se de certos estigmas que foi-se construindo ao longo de história.

Da esquerda para a direita: Tólstoi, Dostoiévski, Gógol, Tchekhov e Púshkin

O mito cult é o principal deles. A escritora e tradutora Érika Batista escreveu um artigo chamado "Literatura russa e o mito cult". Nele, ela procura desconstruir essa ideia de que a literatura russa é inacessível, difícil e que somente os dotados intelectualmente são capazes de gozar dos prazeres que ela proporciona. Mito esse que é difundido não sem razão, é verdade, haja vista os calhamaços densos que Dostoiévski e Tolstói, por exemplo, nos legaram. Contudo, essa impressão que de certa forma rechaça o leitor interessado, se baseia totalmente, penso eu, num certo elitismo intelectual fetichizado, principalmente alimentado por uma certa elite de leitores-criadores de conteúdos internet adentro. Veja que, o meu argumento não é sobre, necessariamente, o conteúdo das obras, mas sim em como elas são discutidas pelos pensadores e "influencers". A noção de que os clássicos russos são profundos, dotados de grandes reflexões, muitas vezes densos não é errada. No entanto, é justamente essa capacidade ímpar de debruçar-se sobre a complexidade humana que reside o maior mérito da litertura russa. 

Um outro estigma que se atrela ao primeiro é sobre as peculiaridades do país; como os nomes e patronímicos, apelidos e corruptelas, e palavras do cotidiano que muitas vezes não são traduzidas (apesar das notas de rodapé) para a manutenção do estilo e da forma, assim como a identidade da linguagem (versta, datcha, mujique, etc e toda sorte das designações dos cargos públicos). Mas afirmo com relativa tranquilidade que esses pormenores são apenas contingenciais e que com o exercício da leitura, a imersão no universo próprio da literatura russa você, naturalmente, vai se acostumar e passar a entender tais singularidades. É questão de simples adaptação. 

Com esta breve introdução - não quero me alongar, pois vou deixar aqui o link para o artigo da Érika que está completo e bem delineado - proponho a você, leitor que possivelmente tem medo, receio, insegurança de se aventurar na literatura russa que se liberte das amarras e acompanhe comigo essa série que inauguro no blog. Serão resenhas de livros que entendo como ótimas portas de entrada para esse universo; todos curtos, com temas não tão densos, porém não superficiais, e que serão analisados aqui sem aquele primor técnico e eloquente tão aclamados pela crítica e alguns divulgadores de literatura russa. Pretendo tão somente te incitar a conferir a genialidade desses autores de forma simples e acessível. 



O primeiro autor é Lev Tolstói - talvez, ao lado de Dostoiévski o mais popular escritor russo - com seu livro Felicidade Conjugal. Como se sabe, Tolstói no auge de sua carreira renega sua obra literária com a publicação de Confissão (1882) chegando a queimar seus escritos, isso porque ele decide adotar um estilo de vida asceta e funda o "tolstoísmo", religião baseada totalmente nas suas visões filosóficas e religiosas. Apesar de considerar-se cristão, era um severo crítico da igreja ortodoxa russa, fato que constitui um dos pilares de sua religião, além da prática do vegetarianismo, entre outras. Dessa forma, é frequente em suas obras um certo discurso moralizante, pregações ético-religiosas, pois acreditava não poder escrever sem "objetivo e esperança de utilidade". No entanto, e por isso escolhi e entendo essa novela como uma das melhores para o leitor iniciar na literatura russa, além da escrita que não é difícil, formal, densa, aqui nos deparamos com um outro lado de Tolstói. O perspicaz e não moralista escritor que compreende como ninguém as nuances dos sentimentos humanos, livre de preocupações sociais e políticas e do seu "delírio de pregador".

Publicada em 1859 a obra é dividida em duas partes narradas por Mária Aleksândrovna. Na primeira, quando então com dezessete anos morando numa casa de campo com sua governanta Kátia e irmã mais nova Sófia, ela narra o processo de descoberta do amor e do desejo ao se apaixonar por Sierguiéi Mikháilovitch, um trintão amigo de seu falecido pai e que agora, com o falecimento também de sua mãe, se torna responsável pelas finanças e propriedades da rica família. Já na segunda parte, Mária e Mikháilovitch estão casados; a felicidade porém, pouco duradoura dá lugar a incertezas que se intensificam com a consciência das diferenças que o casal possui entre si. Assim, a relação aos poucos vai se desgastando; enquanto Mária deseja morar na corte e frequentar a sociedade, seu marido em oposição anseia por uma vida pacata no campo. 

Tolstói jovem; mais ou menos à época da publicação de Felicidade Conjugal

Esse impasse da segunda parte já vai se construindo na primeira. Conforme acompanhamos o florescimento do desejo em Mária, que simbolicamente é acompanhado por descrições minuciosas dos elementos da natureza - sabe quando você se apaixona e o mundo parece perfeito e colorido?! - sabemos que Mikháilovitch por algum motivo se mostra reticente mesmo que no seu íntimo também sinta desabrochar um amor talvez impróprio pela jovem. Na verdade, ele sabe que Mária ainda não experimentara o "absurdo da existência" e ele, já experiente, acredita que mais cedo ou mais tarde esse conflito geracional se interporia na relação. Mas mesmo assim decide por se casar com ela. Nota-se que desde o princípio a relação se construiu sob pilares frágeis. O amor pueril de Mária, sentimento novo, gostoso, não reconhece barreiras, sente que tudo pode e tudo deve; ela mesma pouco sabe o que é tal sentimento como quando diz: 
"Então ainda não sabia que era amor, pensava que isto podia ser sempre assim e que este sentimento nos era dado gratuitamente".
Quando então se declaram e decidem casar, uma mudança no estilo da escrita é percebida. O casal se muda para São Petersburgo (então capital da Rússia), mesmo contra a vontade de Mikháilovitch e Mária pela primeira vez tem contato com a alta sociedade. Aqui as descrições dos elementos da natureza poderiam manter o estilo e voltar-se à nova cidade, a detalhes urbanos que talvez sensibilizariam a jovem. No entanto, Tolstói não o faz. Mária é bem recebida pela sociedade, torna-se uma atração nos bailes e todos admiram aquela beleza única de mulher do campo. O desejo de outrora por algo novo e aprazível transforma-se num sentimento de plenitude. Mária sente-se então completa; seu desejo é saciado. Desta feita, as descrições dos elementos da natureza que antes preenchiam as linhas de Felicidade Conjugal com um lirismo que só Tolstói poderia fazer, simbolicamente também se estancam. Se antes Mária se encantava com o mundo e cada partezinha dele lhe era sentida com tamanha sensibilidade, agora o encanto perde-se com o embotamento da vida em uma cidade grande. Eis a síntese da frase do tradutor Bóris de que nesta obra o "humano e o literário encontram seu máximo de expressão". Além disso, o conflito previsto por Mikháilovitch se intensifica não sem uma dose de ciúmes. E um vazio preenche Mária. 

Aliás, a personagem-narradora de Tolstói é algo revolucionário para a época. São poucos os romances dessa era dita "de ouro" da literatura russa que tem como personagem principal uma mulher. Não só isso, apesar de jovem e muitas vezes inocente, Mária é sagaz a ponto de perceber a estrutura das relações conjugais do seu tempo quando as discussões com seu marido começam a intensificar-se:
"Ah! Então é este o poder do marido - pensei.- Ofender e humilhar uma mulher sem nenhuma culpa. Nisso é que consistem os direitos do marido, mas eu não me submeterei a eles".
Ora,  a relação vai-se arrastando e já com dois filhos e o adultério iminente, o casal opta por retornar à casa de campo na cidade interiorana. Ali, a natureza impera novamente sobre a alma de Mária e o desejo infantil e verde dá lugar a outro novo e maduro e o desfecho imprevisível justifica-se no coração da jovem após ter conhecido o "absurdo da existência". 


Como essa série não pretende elaborar resenhas mais profundas, e sim apresentar ao leitor o universo da literatura russa, manterei os textos mais ou menos com essa forma sucinta. Eu espero de coração poder de alguma maneira motivar você e desconstruir qualquer julgamento que te faça olhar torto para o vasto e delicioso mundo da literatura russa. Não apenas motivar, mas mostrar que isso não é um bixo-de-sete-cabeças, e que qualquer um pode ler, desfrutar e se esbaldar, assim como eu, na literatura mais idolatrada no mundo.  



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