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22.8.20

[Escritos Nacionais] Em cada agora :: Paula V. Silva


Anne caminhou pelos corredores do grande estúdio. Não importava quantas vezes já estivera ali, sempre se sentia intimidada. Astros de Hollywood sorriam e a cumprimentavam, alguns até paravam para trocar algumas palavras com ela. Era surreal, mas não surreal de um jeito bom. Surreal de um jeito estranho. Como se estivesse quebrando as regras, quebrando a ilusão. Aquelas pessoas deveriam permanecer na tela do cinema. Não deveriam estar tão perto a ponto de ela sentir o aroma de seus xampus e loções pós-barba. Era estranho. Mas, se parasse para analisar a situação — e ela vinha se esforçando ao máximo para não fazer isso — chegaria à conclusão de que era ela quem não se encaixava no cenário. Ela não deveria estar ali. 

Sacudiu a cabeça, afastando a insegurança e forçou um sorriso. Estava tudo bem. Tudo maravilhosamente bem. Aquela era sua realidade agora e seria para o resto de sua vida. O sorriso congelou em seu rosto em uma careta. O resto de sua vida. Sacudiu a cabeça mais uma vez e continuou andando. Passaria o resto de sua vida com Will Clark. Will, o cara incrível e amoroso. Inteligente e engraçado. Tão lindo por fora quanto era por dentro. 

Um arrepio agradável percorreu seu corpo ao pensar no noivo. Valeria a pena. Todas as coisas com que ela vinha se preocupando nos últimos meses? Não eram nada. Uma vida ao lado de Will valeria todos os esforços. Valeria os meses longes um do outro, quando ele estivesse gravando fora da cidade, e as viagens constantes para tentar diminuir a distância. Valeria aturar os paparazzi à espreita do lado de fora da casa ou gritando toda vez que a seguissem pelas ruas. Valeria as perguntas inconvenientes no tapete vermelho. Valeria os milhões de pessoas ao redor do mundo que se achavam no direito de especular e opinar sobre suas vidas, como se soubessem alguma coisa sobre o relacionamento dos dois. Como se conhecessem os dois. Odiava aquilo, mas amava Will. O problema era que nos últimos meses, com o casamento se aproximando e a atenção em cima deles crescendo, começara a se questionar se amar Will era o suficiente. Se ela amava Will o suficiente para lidar com tudo aquilo para o resto de sua vida. O resto de sua vida. 

Suspirou ao chegar ao trailer do noivo, o lugar onde ele aproveitava os intervalos entre uma cena e outra para descansar e repassar suas falas. Fechou os olhos, tentando afastar todos aqueles questionamentos, e se forçou a sorrir. Valeria a pena.

— Surpresa! — disse, abrindo a porta e entrando no trailer que era maior do que o apartamento onde morara quando primeiro se mudou para Nova Iorque.

Seus olhos percorreram o lugar e ela demorou alguns segundos para localizar Will. O sofá onde ele passava a maior parte do tempo esparramado, lendo ou cochilando, estava vazio; assim como a pequena cozinha. Ela se virou em direção à mesa de sinuca, que raramente era usada, e seu estômago embrulhou. O chão sumiu e ela poderia jurar que estava caindo em um abismo. 

Will tinha as mãos nos ombros de Catherine Wood e os olhos azuis arregalados, apesar de os dois estarem se beijando. Ele empurrou a companheira de cena gentilmente, a delicadeza do movimento contrastando com o desespero em seu rosto, e se virou para Anne. 

— Anne. — ele deu um passo em direção à noiva, passando uma das mãos pelos cabelos, desnorteado. — Não é o que parece. 

Uma careta surgiu no rosto dele ao dizer as palavras. 

— Eu vou deixar vocês conversarem. — disse Catherine Wood, jogando os longos cabelos vermelhos por sobre o ombro e limpando o batom que sequer estava borrado. 

— Você fica. — Anne respondeu, surpreendendo a si mesma com a firmeza em sua voz, uma vez que todo o resto havia virado gelatina. — Eu vou.

— Anne. — Will a chamou outra vez, a voz falhando. 

Ela não deu ouvidos. Abriu a porta, saiu do trailer, e, ao perceber que Will vinha atrás dela, atrapalhando-se nos próprios pés enquanto tentava alcançá-la, bateu-a com força. Caminhou a passos rápidos e determinados pelos mesmos corredores que a haviam levado até ali. Sorriu para as pessoas que encontrou pelo caminho — a última coisa de que precisava era de gente tirando conclusões e vendendo fofoca para os tabloides — e seu estômago revirou ainda mais com o gesto. Odiava aquilo. Tudo aquilo. Odiava aquele mundo de plástico e odiava a si mesma por ter entrado nele. 

O portão que dava para o estacionamento se abriu e o ar abafado de Los Angeles preencheu seus pulmões de um jeito que nunca parecera tão bom. Precisou se conter para não correr os poucos metros que a separavam do carro. Só mais um pouco e estaria livre. No momento em que entrou no veículo, seus ombros relaxaram e respirar ficou mais fácil. Estava protegida. Longe dos olhares, dos fuxicos. Do noivo. Ou foi o que pensou, até vê-lo correndo em direção ao carro. Ao contrário dela, que tinha caminhado a passos, apesar de apressados, contidos, ele corria. Corria exasperado. Corria como se fosse a final olímpica de uma competição de curta-distância. Corria como se sua vida dependesse daquilo, de chegar até ela. 

Anne ligou o carro, agradecendo aos céus por ter estacionado perto da saída, e, com um movimento ágil do volante, dirigiu para longe; deixando o estúdio e o noivo para trás. Seu coração apertou diante do reflexo dele no espelho retrovisor, as mãos apoiadas nos joelhos, tentando recuperar o fôlego, uma expressão derrotada no rosto. À medida em que se distanciava, a imagem diminuía, e, quando Will se tornou apenas um ponto irreconhecível na paisagem, um soluço escapou de seu corpo. Já era seguro chorar. 

* * *

Anne se jogou na poltrona e fungou, levando mais uma porção de batatas-fritas à boca. Aquele escritório era seu único refúgio em Los Angeles. (Além da casa de Will, que na atual circunstância não se parecia em nada com um refúgio.) A sede da CleanPower, empresa de produção de energia solar que ela criara e presidia, ficava em Nova Iorque, mas comprara o pequeno imóvel em Los Angeles para ter um lugar onde pudesse trabalhar livre de interrupções quando estivesse na cidade. Uma sala, uma pequena recepção (vazia) e um banheiro. Não tinha funcionários, não era uma filial. Era um cantinho só para ela, onde podia se isolar do mundo e se concentrar em suas pesquisas. Era perto da casa de Will e tinha uma vista agradável. O lugar perfeito para comer tranqueira e chorar até criar coragem de enfrentar a bomba que havia estourado em sua cara.

Encheu a boca de batata outra vez, tomou um longo gole de refrigerante e deu uma grande bocada em seu hambúrguer duplo. A mesa, geralmente organizada, estava entulhada com embalagens de fast-food, tinha comprado mais comida do que seria capaz de comer em um dia normal. Mas aquele não era um dia normal e, enquanto focasse na comida, não precisaria lidar com o fato de que tinha encontrado seu noivo beijando outra mulher a duas semanas do casamento. O noivo por quem estava disposta (ou pelo menos por quem queria estar disposta) a enfrentar um amontoado de coisas e situações que odiava. 

O céu já estava escuro e as embalagens de comida vazias, quando o som discreto da porta da frente sendo aberta quebrou o silêncio que tomava conta do local. O ar ficou preso em seus pulmões e seu estômago se contraiu de tal forma que Anne quis vomitar. Passos cautelosos ecoaram alto pela recepção, aproximando-se do escritório, então uma batida tímida à porta. Ela fechou os olhos, apertando-os com força; em parte na esperança de que tudo aquilo desaparecesse, em parte em uma tentativa de controlar a ânsia de vômito. 

— Anne? — a voz de Will era um fio, fraca e triste, mas foi o suficiente para que ela perdesse a batalha. 

Agarrou a lixeira ao lado da mesa e vomitou toda a comida em seu estômago. As mãos que ela conhecia tão bem prontamente seguraram seu cabelo, fazendo um carinho suave em suas costas, e ela vomitou ainda mais. Quando levantou o rosto da lixeira, Will a olhava com um misto de preocupação e desalento.

— Você está bem? — ele perguntou, a voz suave, estendo-lhe alguns lenços de papel. Ela os pegou e, enquanto limpava o rosto e a boca da melhor maneira possível, balançou a cabeça. 

Não, não estava bem. Queria gritar com ele, dizer que sabia que se envolver com um ator de Hollywood nunca daria certo. Mas não o fez porque, se tentasse, em vez de gritar, começaria a chorar. Além de que aquilo não era verdade, não toda a verdade. Will não era o que se esperava de um ator de Hollywood. Não era deslumbrado pelos holofotes; era engajado em projetos sociais e preferia os palcos às telas de cinema. Um relacionamento com qualquer outro ator de Hollywood estaria fadado ao fracasso, mas não um relacionamento com ele. E era por isso que as dúvidas recentes doíam tanto. Era por isso que descobrir a traição magoava tão fundo. 

— Anne, não é nada do que você está pensando. — ele disse, ajoelhando-se à sua frente, para poder olhá-la nos olhos. — Me mata te ver assim por uma coisa que não aconteceu.

— Então eu imaginei aquele beijo? — falou, a voz rouca por causa do choro e do vômito. 

— Não. — ele passou as mãos pelo rosto e pelos cabelos. — Mas as coisas não são o que parecem. 

— Vai me dizer que vocês estavam ensaiando uma cena? — encontrou forças para uma risada irônica e se levantou, quebrando o contato visual e indo até o banheiro. Lavou o rosto, enxaguou a boca e, quando voltou à sala, completou. — Ela é sua irmã no filme. 

Evitou os olhos azuis que a encaravam e se pôs a recolher as embalagens espalhadas pelo escritório.

— Anne. — a tristeza na voz dele foi tão profunda que ela parou, o copo de milk-shake vazio nas mãos, e se virou para olhá-lo. — Você me conhece. Nós estamos juntos há três anos. Nós vamos nos casar. Você realmente acha que eu faria isso com você? 

A resposta era fácil, não. Will não era o tipo de pessoa que escondia segredos. Era sincero e optava sempre pelo diálogo, por isso tudo aquilo fazia ainda menos sentido. 

— Não. — respondeu. — Mas não tem como negar o que eu vi.

— Eu não estou tentando negar, eu só quero que você me deixe contar o que aconteceu. Vamos para casa. Você toma um banho, eu faço uma sopa e a gente conversa. Como a gente sempre faz.

Adiar a conversa não faria a situação se resolver magicamente. Pelo contrário, só pioraria tudo. O melhor a se fazer era encarar aquilo de frente e lidar com as consequências que viriam, fossem quais fossem. Concordou, uma chama de esperança surgindo dentro de si ao ver um sorriso singelo, porém, amoroso (como todos os sorrisos que ele direcionava  a ela) nascer no rosto de Will.

O caminho até Malibu foi silencioso, mas não durou mais do que dez minutos. Anne foi direto para o quarto, despindo as roupas que cheiravam a fritura e vômito e entrando no chuveiro. Tomou um banho quente e demorado, deixando a água cair por sua pele na esperança de que lavasse mais do que seu corpo, de que levasse consigo também os seus problemas. Saiu do chuveiro e encontrou sobre a cama seu pijama, junto com o moletom de Will que mais gostava de usar. O moletom que ele sempre deixava com ela quando estavam longe. Seus olhos se encheram de lágrimas e ela resistiu à vontade de vestir o agasalho. 

Desceu até a cozinha e sentou em uma das banquetas. Will olhou para ela por cima de um dos ombros, enquanto servia a sopa que tinha preparado, e então lhe entregou a tigela quente, sentando-se também. O alimento leve a acalentou. Ficaria bem. Seu coração já se partira uma vez e ela havia sobrevivido. Mesmo achando que não conseguiria, que seu coração estava despedaçado além de reparação, havia sobrevivido. E sobreviveria de novo.

— O que aconteceu entre você e a Catherine? 

Will suspirou e, olhando nos olhos dela, respondeu:

— Ela apareceu no meu trailer dizendo que estava tendo dificuldade com uma das cenas, que não entendia a motivação da personagem. — ele balançou a cabeça, como se devesse ter percebido que algo estava errado. — Nós estávamos conversando sobre a cena, até ela levar o assunto para uma direção estranha. Perguntou sobre o nosso casamento, se eu estava nervoso. Eu disse que não, que mal podia esperar para passar o resto da minha vida com você. Então ela disse que um pouco de dúvida era bom, que ter opções fazia a gente ter certeza de que queria mesmo aquilo, e mais um monte de bobagem. Eu nem prestei atenção, porque não estava entendendo nada. Eu só sei que de repente ela disse ‘eu posso te ajudar a ter certeza’ e me beijou. E eu estava me afastando, quando você entrou. Foi isso. 

Will Clark era um ótimo ator — os dois Oscars e os três Globos de Ouro em cima da lareira eram prova —, mas não era um bom mentiroso. Não misturava a vida com o trabalho. Mesmo em cena, Will nunca fingia. Dava vida a personagens, não a encenações. O tom de sua voz mudava, seu caminhar adquiria uma cadencia diferente, o brilho de seus olhos se transformava. Na vida, Will era sempre Will. O brilho intenso e genuíno em seus olhos ao olharem fundo nos dela confirmava aquilo. Era Will. 

Anne assentiu, abaixando os olhos e encarando a tigela de sopa, agora vazia, mas ainda quente em suas mãos.

— Diz alguma coisa. — ele pediu. — Por favor.

— Eu acredito em você. — disse e, ao dizer as palavras, deparou-se com o que mais temia. A percepção de que aquele beijo não era o único de seus problemas. Era, na verdade, o menor deles. 

O sorriso triste e as lágrimas nos olhos de Will indicavam que ele também sabia. Ele apoiou os cotovelos na bancada e escondeu o rosto nas mãos. Ficaram em um silêncio melancólico por uma eternidade, até que Anne encontrou coragem para dizer as palavras que ambos já esperavam.

— Eu não vou conseguir. — disse e Will levantou a cabeça para olhá-la. — Eu pensei que ia conseguir. Eu queria conseguir, Will. Mesmo. Mas eu não quero passar a vida inteira me escondendo de paparazzi, não quero estar toda semana na capa de uma revista de fofoca diferente. Eu não quero essa vida para os meus filhos. Não quero passar o resto da vida com um monte de estranhos palpitando sobre o meu casamento. E não quero um casamento em que eu passe três meses no ano com o meu marido e os outros nove tentando fazer as nossas agendas baterem, viajando dezoito horas para conseguir passar dois dias com você. Eu já passei por isso uma vez e não quero passar por isso de novo. 

— Eu entendo, Anne. Mas nós conseguimos conciliar as viagens pelos últimos três anos. E eu vou ser mais seletivo com as minhas escolhas. Vou fazer mais peças em Nova Iorque. Quanto à mídia... Não tem muito o que eu possa fazer e você sabe que eu odeio isso tanto quanto você, mas aos poucos eles vão perder o interesse na gente.

Às vezes, Anne tinha a impressão de que Will odiava tudo aquilo ainda mais do que ela. Ele falava de forma quase rancorosa sobre o filme que o jogara no centro dos holofotes. Interessava-se por roteiros menos comerciais e, por isso, conseguira conciliar uma vida tranquila e a carreira por quase uma década, até ser chamado para interpretar seu herói favorito dos quadrinhos. Sabia as consequências que aquela escolha traria para sua vida pessoal, mas aquele não era um personagem qualquer. Não era um herói qualquer. Daniel Hill, ou Capitão do Amanhã, estivera ao seu lado nos momentos mais difíceis de sua adolescência. O rapaz magricela e inteligente dos quadrinhos lhe ensinara que qualquer pessoa poderia ser um super-herói. Que todos traziam um super-herói dentro de si. Para Will, dar vida a Daniel H. era mais do que um sonho, era uma forma de agradecê-lo por tudo o que o personagem havia feito por ele. 

Lutara pelo papel com tudo de si, mas logo percebera que, ao contrário dele, os grandes chefes do estúdio não se importavam com o personagem. Suas atenções estavam nos números, nos recordes de bilheterias. E, assim, transformaram a história de um herói tímido e pacífico, cuja força era muito mais emocional e intelectual do que física, em um espetáculo de cenas de ação que sequer faziam sentido. Will fizera o possível para manter a essência do personagem, para mostrar quem Daniel realmente era. Dera um espetáculo nas cenas em que contracenava com a avó e o melhor amigo, mas, apesar de seus esforços, o filme fracassara nas bilheterias. 

Os fãs não ficaram satisfeitos com as decisões do estúdio e, no fim, ambos os lados (espectadores e produtores) culparam-no pelo desastre. As divergências com os produtores aumentaram no segundo filme da franquia e o terceiro foi cancelado ainda no estágio de pré-produção. Independente do fracasso dos números, entretanto, a exposição por interpretar um super-herói revirara sua vida de cabeça para baixo e ele duvidava que algum dia conseguisse recuperar a vida pacata e tranquila que vivia antes do papel. 

Apesar do desastre do roteiro e dos números, interpretar Daniel Hill lhe trouxera duas coisas pelas quais seria eternamente grato. A chance de ver o enorme sorriso no rosto das crianças ao conhecerem o herói em carne e osso. E Anne. Haviam se trombado — literalmente — em um gala beneficente para o qual ele havia sido convidado por causa do trabalho que fizera com os hospitais infantis durante as gravações do filme. Agora, porém, mesmo papel que o levara até Anne os estava separando.

— Eu não quero privar você de fazer o que mais ama, Will. — disse Anne — Eu sei o quanto você se importa com os personagens que interpreta, o quanto você se dedica a tudo o que faz e eu não quero interferir nisso. 

— Eu amo você.

— Eu sei. E eu também amo você. Muito. Mas nem sempre amor é o suficiente. — ela disse, a voz falhando, as lágrimas caindo. 

Aquela era a segunda decisão mais difícil que Anne já tomara em sua vida e a estava tomando justamente para não repetir os erros do passado. Para não ter que, mais tarde, tomar, pela segunda vez, a única decisão mais difícil do que aquela.

* * *

Organizar o casamento foi uma tarefa árdua. Meses e meses escolhendo locação, data, cardápio. Decidindo detalhes como a fonte usada nos convites e a cor dos guardanapos. Anne não esperava, no entanto, que cancelar um casamento fosse tão trabalhoso quanto. Ligações sem fim para fornecedores e organizadores, ao mesmo tempo em que tentava ao máximo evitar que a notícia se espalhasse pela impressa. Por sorte, tinha Will ao seu lado para lhe ajudar com tudo aquilo, da mesma forma que ele havia lhe ajudado com todos os preparativos. 

— Merda! — ela disse, quando seu celular apitou com uma mensagem de Miranda Priestly. 

— O quê? — Will perguntou, encerrando mais uma ligação. 

Anne mostrou o celular para o ex-noivo e o rosto dele empalideceu. Na tentativa de evitar que helicópteros sobrevoassem o casamento e que paparazzi cercassem a propriedade no dia do evento, ela e Will haviam concordado (a contragosto da parte dos dois) em receber um fotógrafo da Runway para bater algumas fotos do casal após a cerimônia. Um editorial discreto, que saciasse a curiosidade do público sem invadir a privacidade dos dois mais do que o necessário. E agora a editora-chefe da revista lhe enviava uma mensagem para confirmar o local e o horário da cerimônia. 

— Merda. — Will pegou a garrafa de vinho que bebiam e entornou um longo gole no gargalo. — Estamos fritos.

Anne fechou os olhos em uma careta e tomou a garrafa das mãos dele, virando o resto da bebida de uma só vez. Morriam de medo de Miranda Priestly.

— Par eu ligo, ímpar você liga. — ela disse, colocando a garrafa de lado e erguendo uma das mãos em punho. 

Melhor de três virou melhor de cinco e, antes que virasse melhor de dez, decidiram enfrentar a fera juntos. Anne apertou o botão, iniciando a ligação, e colocou a chamada no viva-voz.

— Anne, querida. — a voz contida e esnobe de Miranda preencheu a sala. — Como vão os preparativos para o casamento?

Anne e Will se entreolharam e, em silêncio, jogaram par ou ímpar uma última vez. Ímpar. Will xingou baixinho.

— O casamento foi cancelado, Miranda. — ele disse; os olhos fixos no chão, não por medo de Miranda Priestly, mas porque ainda lutava contra as palavras. Contra o que elas significavam.

Anne segurou a mão dele e a apertou, tentando lhe passar carinho e conforto. Os olhos azuis a olharam e a respiração dela falhou. Conseguia imaginar um futuro inteiro ao lado de Will. Via os dois morando em uma casa aconchegante em Nova Iorque, patinando no Central Park no inverno e fazendo piqueniques no verão. Mas aquela imagem era uma ilusão. Viveriam divididos entre, no mínimo, Los Angeles e Nova Iorque e os passeios ao Central Park seriam raridade. A carreira de Will tinha um peso que ela havia tentado ignorar e que, ao contrário do que esperava, não havia diminuído com o tempo, mas sim aumentado. Queria uma vida, um futuro, que pertencesse a ela e não ao mundo. 

Uma risada apática soou pela sala, quebrando o contato visual entre os dois, e um silêncio desconfortável se seguiu.

— Está brincando, não é mesmo? — disse Miranda e, pela primeira vez, Anne notou um toque de emoção na voz da mulher. Não sabia distinguir, no entanto, se era irritação ou impaciência.

— Não, Miranda. — ela falou, a voz firme. O medo dando lugar ao aborrecimento. — Eu não sei você, mas nós não brincamos com esse tipo de coisa.

— O casamento não pode ser cancelado. — Miranda foi categórica. 

— Não estamos pedindo a sua permissão. — falou Will. — A sua opinião não conta aqui.

Poderiam apostar que Miranda tinha uma das mãos na têmpora, uma expressão de desdém no rosto e que rolava os olhos.

— Certo. Eu não me importo com a vida de vocês. Casem-se, não se casem. Não me interessa. Eu me importo, porém, com a Runway. No momento, mais precisamente com a edição de maio que tem a capa e um editorial de três páginas reservado para os noivos. Portanto, a única coisa que me interessa é: quanto vocês se odeiam?

— O quê? — Anne perguntou, confusa. 

— Quanto vocês dois se odeiam? — Miranda repetiu, impaciente, como se falasse com uma idiota, e Anne teve certeza de que a mulher estava rolando os olhos outra vez. — Eu ainda preciso de uma capa e de um editorial de três páginas com vocês dois

— Não faz sentido fotos de casamento, se não vai ter casamento. — disse Will.

— Não, não faz. Por isso terei que criar um novo conceito para as fotos. Como se eu já tivesse trabalho suficiente estando cercada por incompetentes. 

— Miranda, não. — Anne balançou a cabeça. — Eu sinto muito, mas não. Sem fotos. Eu vou para o interior amanhã e vou estar indisponível pelo próximo mês. Você vai ter que encontrar outra pessoa. Não deve ser difícil. Liga para Gisele, tenho certeza de que ela e o marido ficarão felizes em pousar para um editorial da Runway.  Sete dicas para o casamento perfeito. Ou qualquer baboseira desse tipo.

— Gisele apareceu na capa de janeiro, não podemos colocá-la na capa de maio também.

— Olha, sei lá. Chama a Cindy Crawford, então. Beleza depois dos cinquenta. Eu não sei, qualquer coisa. 

— Cind--

Miranda não chegou a completar a frase, porque Anne apertou o botão encerrando a ligação.

— Você desligou na cara dela? — Will perguntou, os olhos arregalados, segurando uma risada.

— Sim. — fez uma careta.

Ele riu alto e ela o acompanhou com um riso tímido. A primeira vez que riam desde que haviam decidido terminar o noivado.

Caíram na cama, exaustos, depois de passarem a manhã e a tarde cancelando os preparativos para o casamento. Will passou os braços ao redor dos ombros dela e Anne se aconchegou no peito dele. Ainda era estranho navegar a linha entre a intimidade adquirida ao longo de três anos juntos e o espaço individual que vinha com o término do noivado. Mas, como tudo no relacionamento deles, de forma natural haviam encontrado um meio-termo. Aproveitando ao máximo o tempo que lhes restava juntos.

— Você acha que eu ficaria bem loira? — Anne perguntou. 

Will se contorceu para olhá-la, as sobrancelhas franzidas. 

— Não sei se eu tenho coragem de pintar, mas talvez uma peruca. 

— Do que é que você está falando? — ele riu.

— Vou precisar me disfarçar para não levar ovada toda vez que sair na rua depois que a notícia vazar. 

— Sabe... Talvez um editorial na Runway não seja de todo ruim. — ele se sentou, trazendo Anne consigo com delicadeza. — Pensa bem. Uma capa com nós dois juntos, mesmo após o término do noivado, colocaria fim em qualquer especulação. As pessoas não teriam como criar um vilão, porque nós estaríamos fazendo as coisas do nosso jeito. Mostrando que continuamos amigos e que está tudo bem. Se conseguirmos segurar a notícia até a revista sair, pode ser perfeito. Nós teríamos o controle de como contar e do que contar. O que você acha?

Mais do que considerar a ideia, Anne considerou as opções. Poderiam fazer o editorial e ter o controle sobre como a notícia seria propagada ao público, ou poderiam esperar a notícia vazar e ter o motivo do término especulado por todos os meios de comunicação — não gostava nem de imaginar todas as justificativas malucas e cruéis que seriam inventadas. Um editorial ao lado de Will na maior revista do país lhes dava a chance de contar a própria versão da história. Não precisariam contar tudo, mas poderiam dizer que havia sido uma decisão difícil, que haviam chegado a ela juntos e que ainda existia muito amor entre eles. Teriam a chance de contar a verdade. E a chance de serem ouvidos seria muito maior do que por meio de uma declaração impessoal veiculada na impressa pela assessoria de Will. 

— Par eu ligo, ímpar você liga? — ela disse, segurando a risada. 

Ligaram juntos. Miranda soou quase esperançosa quando atendeu a ligação, provavelmente achava que o casamento estava de pé outra vez. De qualquer forma, todo traço de mau-humor, aborrecimento, frustração ou irritação se esvaiu da voz da mulher quando Will lhe contou a ideia para o novo editorial. Runway teria a notícia exclusiva e um texto escrito pelos próprios ex-noivos, além, claro, de uma sessão de fotos (a primeira e última) dos dois juntos. Um recorde de vendas certo. Afinal, a única coisa que vendia mais do que casamentos era términos. 

— Ótimo! — Miranda disse, uma leve empolgação presente na voz da dama de ferro. — Mantemos a mesma data? Podemos usar a locação do casamento e assim não será preciso muitos ajustes quanto ao fotógrafo e à equipe. 

A mesma data do casamento. Ou seja, em cinco dias.

— Vou precisar cancelar a passagem para Hale. — Anne suspirou, pegando o computador na mesa de cabeceira.

— Hale. — Will sorriu. — É perfeito. 

— Como assim? — Anne perguntou e Will gesticulou que já lhe explicaria.

— Você consegue agendar com o fotógrafo em Hale, Maryland? Mesma data, mas em Maryland? — ele perguntou para Miranda.

— Maryland? — a desaprovação estava de volta à voz da mulher. 

— Sim. Hale, Maryland. 

Mirando suspirou do outro lado da linha, mas não disse nada. Talvez esperando que seu silêncio intimidasse Will e ele voltasse atrás, mas ele se manteve em silêncio. Uma batalha muda entre os dois. Até que Miranda cedeu.

— Vou ver o que posso fazer. — ela disse e desligou.

— Miranda Priestly nos odeia. — Will sorriu vitorioso e orgulhoso.

Anne ergueu uma sobrancelha.

— Você quer fazer as fotos em Maryland? Pior, em Hale?! Você lembra que só tem pasto e vaca por lá, certo?

O sorriso de Will aumentou, não era mais o sorriso vitorioso. Era seu sorriso verdadeiro, aquele que fazia os olhos azuis brilharem, o sorriso de quando estava genuinamente feliz. O coração de Anne apertou; sentiria falta daquele sorriso e daquele brilho no olhar que eram tão únicos e característicos de Will Clark. Sentiria tanta falta de Will

— Sim, mas você está se esquecendo de um detalhe bem pequenininho. — ele fez o gesto com a mão — Hale, Maryland , também é o cenário de seu filme favorito.

Anne estava tão hipnotizada pelo sorriso do noivo — ex-noivo, seria difícil se acostumar ao novo título — que demorou um segundo para lembrar qual era o seu filme favorito. Até que seus olhos se arregalaram e ela deu uma gargalhada alta, caindo na cama de tanto rir. Noiva em Fuga. Seu filme favorito era Noiva em Fuga. O auge de sua infância foi conhecer Julia Roberts e Richard Gere, quando os dois se hospedaram na pequena pousada de seus avós (agora de seus pais) durante a gravação do filme que se passava na cidadezinha onde ela havia nascido e vivido até os dezoito anos de idade.

— Vai ser leve e divertido, o jeito perfeito de mostrar que estamos bem. Que continuamos amigo. — ele falou, jogando-se ao lado dela. 

— E eu ainda vou poder usar o meu vestido de noiva! — ela sorriu e se aproximou de Will, parando ao perceber que estava prestes a beijá-lo. Sem jeito e sentindo as bochechas corarem, afastou-se. Um beijo cruzaria as linhas tão bem delimitadas entre eles. Um beijo tornaria tudo ainda mais difícil. — Eu vou mandar um email para Miranda, explicando a sua ideia. 

— Eu tenho certeza de que ela vai amar! — Will disse, cheio de sarcasmo, levantando e depositando um beijo na cabeça de Anne ao passar por ela. — Vou comprar minha passagem para Maryland. Qual o seu trem? Talvez a gente consiga viajar juntos. 

* * *

Miranda tinha amado a ideia. E de um jeito não-sarcástico. No fim das contas, o tema Noiva em Fuga dava a ela os dois assuntos que mais vendiam revista em um só. Era um casamento e um término, tudo ao mesmo tempo. E o grande cheque-mate: Anne em seu vestido de noiva. A pá de cao sobre a concorrência. 

A editora-chefe organizou todos os detalhes em um silêncio absoluto, que durou até a noite anterior à sessão de fotos, quando toda a equipe da Runway já estava devidamente hospedada na cidade e o celular de Anne apitou com uma série de mensagens da dama de ferro.  

Demarchelier está no hospital. Não poderá viajar.

Consegui um excelente fotógrafo para substituí-lo. 

Está no avião nesse exato momento.

Encontrará vocês amanhã às 9h, na igreja.

Vocês têm sorte, não se consegue um fotógrafo desse nível assim de última hora.


Para não correr o risco de ser acordada por novas mensagens, Anne desligou o celular. Deitou-se na cama com um aperto no coração muito diferente das agradáveis borboletas no estômago que estaria sentindo caso vivesse em um conto de fadas e o casamento não tivesse sido cancelado. Era a decisão certa, mas era difícil. Havia passado por um divórcio uma vez e não queria reviver a experiência nunca mais. Não queria ver seu casamento se desfazer aos poucos, o amor se desgastar. E era exatamente o que aconteceria. As viagens, as fofocas, os holofotes. Todos aqueles elementos externos gradativamente se infiltrariam em seu casamento, em suas rotinas. Sabia disso, porque algo similar havia acontecido da primeira vez, quando ela ainda era uma jovem que acreditava cegamente no poder do amor. Agora já não se jogava de cabeça, sem pesar as consequências. Não podia se dar ao luxo de um coração despedaçado, não quando o seu já estava todo remendado. 

Estar em Hale não ajudava. Ao mesmo tempo em que estar em casa lhe trazia uma sensação de segurança quase inabalável, como se seus pais a pudessem proteger de todo o mundo lá fora, também trazia lembranças que ela preferiria deixar adormecidas. Lembranças boas e, por isso, tão dolorosas. E assim, com o coração apertado e um turbilhão de pensamentos e arrependimentos inundando sua mente, Anne adormeceu.

* * *

A pousada estava lotada. Pessoas correndo de um lado para o outro, gritando instruções que ela não entendia. No quarto, sentada diante de uma penteadeira improvisada, Anne era paparicada por quatro pessoas que trabalhavam simultaneamente. Uma fazia seu cabelo, outra sua maquiagem, uma terceira pintava suas unhas. A quarta era sua mãe, que falava sem parar. Era como a preparação para um casamento de verdade, só que sem o casamento. 

Quando se viu sozinha no quarto onde crescera, vestida em lindo vestido de noiva, seus olhos se encheram de lágrimas. Sentou-se na cama, tentando impedir o choro de cair. Não podia borrar a maquiagem, nem amassar o vestido, nem estragar o penteado. De repente, foi invadida por uma vontade louca de fugir. Noiva em Fuga. Literalmente. Exceto que ela era uma ex-noiva. Ex-noiva em fuga. 

Foi até a janela, uma nostalgia estranha a invadindo. Havia feito aquilo um milhão de vezes ao longo da adolescência, conseguiria fugir mesmo de olhos fechados. Só precisava passar uma perna, depois a outra, então desviar da telha solta no telhado e dar três passos para a esquerda. Esticar os braços e, com um impulso, agarrar o troco proeminente da grande amendoeira em frente à pousada. Dali era só procurar as falhas no tronco para apoiar os pés e voilá, estaria em terra firme. Conseguiria fugir em menos de quinze segundos. 

Levantou a barra do vestido, a primeira perna estava a meio caminho da janela, quando uma batida soou.

— Anne. Sou eu, Will. Posso entrar? 

Ela ficou imóvel por um momento, até que se distanciou da janela e se aproximou da porta. Quando a abriu, o ar fugiu de seus pulmões. Ele estava lindo. Incrivelmente lindo. Como um astro de cinema. Porque ele era um astro de cinema. A expressão no rosto de Will mudou ao vê-la, seus lábios se separaram e seus olhos se arregalaram minimamente.

— Vo-- — ele limpou a garganta, tentando encontrar a própria voz — Você está linda.

Houve um instante de silêncio enquanto se olhavam, imaginando tudo o que poderia ter sido. Todo o futuro que jamais teriam. 

— Eu estava prestes a fugir pela janela. — admitiu e Will sorriu.

— Uma verdadeira noiva em fuga. — ele disse, sem o ‘ex’. Então lhe estendeu a mão, como sempre fazia quando ela se sentia insegura ou intimidada, por alguém ou por alguma situação. — Vai ficar tudo bem. Vamos fazer isso juntos.

Sem hesitar, Anne segurou a mão de Will, entrelaçando seus dedos. Fariam aquilo juntos. Tudo ficaria bem. Sobreviveria. Mais uma vez.

* * *

Ainda segurava a mão de Will, quando subiram os degraus e adentraram a igreja, caminhando pelo tapete vermelho, cercados por um longo e majestoso corredor de flores até o altar. 

— O fotógrafo ainda não chegou? — Will perguntou.

— Aqui. — uma voz soou alto, ecoando pelo local de um jeito intimidador.

Anne se virou para a entrada da igreja e, pela segunda vez naquela manhã, o ar fugiu de seus pulmões. Por um segundo, seu coração parou de bater, para então bater desenfreado. Fechou os olhos e apertou a mão de Will, ainda na sua. Aquilo era uma alucinação, um pesadelo. Não era real. Contou até três e, quando já estava mais calma e convencida de que havia confundido o fotógrafo com outra pessoa, abriu os olhos novamente. 

O homem caminhava, dirigindo-se ao altar, onde ela e Will estavam. Não era alucinação. Era real, era ele. James Alexander Fraser. Um sorriso aberto e sincero iluminava seu rosto, deixando em evidência as covinhas que ela costumava amar. Ele se aproximou e Anne perdeu o equilíbrio, tropeçando nos próprios pés. James se adiantou para ajudá-la, mas Will foi mais rápido, impedindo que ela se esborrachasse no chão.

O noivo (ex-noivo!) lhe sorriu gentil, certificando-se de que ela estava bem, e em seguida virou-se para o fotógrafo.

— Will. — disse, estendendo a mão livre.

— James. — o recém-chegado cumprimentou, cordial. Então se virou para ela, o sorriso aumentando, fazendo-a corar como se tivesse dezessete anos outra vez. — É bom te ver, Anne. Você está linda.

— Vocês se conhecem? — o sorriso de Will se tornou mais simpático.

— Estudamos juntos. — James respondeu, os olhos verdes olhando-a com um afeto que a surpreendeu e fez com que ela vacilasse um pouco.

Anne não respondeu, apenas ficou ali, em pé entre o ex-noivo e o ex-marido, desejando ter fugido pela janela quando tivera a chance. 

* * *

Não levava jeito para modelo, não gostava de ser o centro das atenções e nunca conseguia fazer caras e poses para a câmera. Estar naquela igreja, com aqueles dois homens, só piorava tudo. James lhe dava instruções, dizendo para onde olhar e como se posicionar, mas parecia que ele estava falando outra língua. 

Olhava para ele, com a câmera diante do rosto, e só conseguia pensar em todas as vezes que ele a havia fotografado quando ainda eram adolescentes e depois, quando estavam casados. A diferença era que antes não eram necessárias instruções; ele capturava os momentos reais, as risadas espontâneas. E, mesmo de pijama furado e toda descabelada, ela nunca se sentia insegura ou sem graça. Havia intimidade, confiança. Havia a certeza de que, sempre que ele pegava a câmera, era porque via nela algo, por menor e mais bobo que fosse, que achava digno de ser eternizado. 

Fotografias que agora estavam guardadas, esquecidas, em uma caixa no fundo do armário. As que haviam ficado com ela, pelo menos. Não fazia ideia do que James fizera com as fotografias que haviam ficado com ele. Uma ponta de tristeza surgiu em seu peito ao pensar que talvez ele as tivesse jogado fora.

Corria pelo tapete vermelho, segurando o vestido com uma das mãos e jogando o buquê com a outra, enquanto Will se esticava, o braço estendido para alcançá-la. Repetiram a cena tantas vezes que os lencinhos para secar seu rosto já estavam perto de acabar quando James gritou:

— Conseguimos! Podemos seguir para a próxima locação.

Funcionários da Runway se puseram a recolher os equipamentos e alguns carros imediatamente seguiram para o próximo local, o centro histórico da cidadezinha. Anne, no entanto, sentou-se em um dos bancos da igreja, tirando o sapato de salto e massageando os pés. 

— Tudo bem? — Will perguntou, agachando à sua frente e lhe oferecendo uma garrafa de água. 

— Não sei sobrevivo a um dia inteiro correndo nesses sapatos. — disse com uma careta.

Will tocou seus pés, fazendo uma breve massagem e ela fechou os olhos em alívio. 

— Tudo bem se ela fizer o restante das fotos descalça? — Will falou e, ao abrir os olhos, Anne percebeu que James estava ao lado deles, olhando para ela com um cuidado semelhante ao de Will.

— Claro! — ele respondeu prontamente — Acho que vai ficar até melhor, com mais cara de fuga.

Anne lhe ofereceu um pequeno sorriso em agradecimento.

— Eu vou pegar um chinelo para você. — disse Will, levantando e deixando a igreja em direção a uma das vans que ainda estava estacionada do lado de fora.

Então, pela primeira vez em cinco anos, ela se viu sozinha com James Fraser. Fixou os olhos nos próprios pés e tentou não pensar em nada, tentou não se lembrar de todos os momentos vividos juntos (nem dos bons, nem dos ruins). Pretendia manter-se daquele jeito até que ele se afastasse, mas James nunca fora muito bom em fazer o que ela esperava dele.

— Você está linda. — ele disse.

Anne ergueu os olhos para olhá-lo e, ao ver o sorriso tímido que ele trazia no rosto, seu coração se aqueceu de um jeito que não acontecia há muito tempo. Amava Will, mas era diferente com James. Talvez porque que ainda acreditava cegamente no amor quando se casaram, talvez por terem vivido as duas maiores perdas de suas vidas juntos. 

— É uma pena que não tenha dado certo com Will, ele parece um cara legal. Sinto muito, de verdade, Annie.

— Ninguém me chama de Annie há uns -- — parou, ao percebeu o que estava prestes a dizer, mas James completou a frase por ela.

— Cinco anos? — ele disse, o sorriso tímido transformando-se em triste.

— É.

Cinco anos. O tempo que estavam separados. Também a quantidade de anos que não se viam. 

James abriu a boca para dizer alguma coisa, mas Will voltou, os chinelos nas mãos.

— Aqui. — Will estendeu os chinelos para ela e então se virou para James, tocando o ombro dele como faria com um velho amigo. — Estão te procurando lá fora.

James concordou, os olhos ainda em Anne, então se virou e deixou a igreja. 

* * *

Miranda Priestly havia alugado um pequeno furgão da Fedex. Um grande adesivo com o logo da Runway cobria o nome da empresa e Anne agradeceu aos céus porque não precisaria correr. Tudo o que tinha que fazer era ficar em pé, dentro do furgão, e olhar para Will estoicamente, enquanto o motorista dirigia para longe e ele corria, tentando alcançar o carro. 

Will era o protagonista naquelas fotos, então não demoraram a conseguir uma boa fotografia. Logo estavam seguindo para a locação seguinte, a fazenda Fraser. O local onde Anne passara boa parte de seus dias durante a adolescência. A fazenda era enorme, mas acolhedora, e estava na família de James há gerações. Apesar da ótima condição financeira dos Fraser, era da fazenda que a família tirava os ovos, o leite e boa parte das verduras e legumes que consumiam.

Anne amava o lugar. Costumava passar horas e horas aventurando-se por todos os cantos da fazenda com James e Ben, sem nunca se cansar. Cruzar a grande porteira foi como voltar no tempo. Sentia-se com dezessete anos outra vez, quase podia ouvir a gargalhada de Ben sempre que ela — distraída em sua empolgação para chegar aos cavalos — pisava em uma pilha de esterco no caminho até o estábulo. A saudade espremeu seu peito e Anne se sentiu sufocar. Nada se comparava àquela risada. 

Iriam fotografar ao pôr do sol e, enquanto a equipe aproveitava as horas que tinham para descansar, Anne se distanciou, fazendo o conhecido caminho até o estábulo. Ergueu o vestido o melhor que pôde para não sujá-lo, certificando-se de não pisar em nada além de grama. O local estava exatamente como ela se lembrava e, ao ver os cavalos, lágrimas de saudades e alegria encheram seus olhos.

Estrela — a égua cor de caramelo com um sinal branco na testa — agitou-se ao vê-la, relinchando inquieta. Anne se aproximou e, quando tocou seu grande focinho, a égua fez um som desaprovador, mas então se acalmou e mexeu a cabeça, incentivando o carinho. Os olhos grandes e escuros a olhavam com atenção, como se temessem que ela desaparecesse, e, tomada pelo arrependimento de ter abandonado sua fiel companheira por tanto tempo, as lágrimas enfim caíram.

— Eu senti saudades, garota. — disse, limpando o rosto sem se preocupar com a maquiagem. — Muita saudades. Desculpa ter ficado tanto tempo longe.

Estrela piscou devagar, aceitando o pedido de desculpas, e Anne sorriu. 

Raio e Trovão se agitaram, esperando a vez deles de receber atenção, e ela caminhou até os dois. Raio era um cavalo branco que, assim como Estrela, tinha um sinal na testa, o dele, porém, era marrom. O cavalo de Ben. Já Trovão era todo escuro; enxergá-lo à noite era impossível, mas o som de seu galope ecoava alto, percorrendo distâncias. Um corcel negro. O cavalo de James. 

Vira os três cavalos nascerem, assistira aos primeiros passos de cada um deles, e, ao acariciar suas crinas, sentiu-se culpada pelos anos de ausência. Quando eram casados, ela e James voltavam à Maryland ao menos uma vez por mês para vê-los, mas as visitas diminuíram com o tempo e com o declínio do casamento. Chegara a visitar a fazenda sozinha algumas vezes nos primeiros meses após o divórcio, mas, sem Ben e sem James, não parecia certo. Agora, entretanto, arrependia-se de ter abandonado os cavalos. Com o coração cheio de remorso pelos anos desperdiçados, prometeu a si mesma reparar aquele erro.

— Eles sentem a sua falta. 

Anne se virou, sobressaltada, e encontrou James encostado na entrada do estábulo, as mãos nos bolsos. Por um momento pensou que ele fosse completar a frase dizendo ‘eu também’, mas, em vez disso, ele apenas se aproximou de Estrela e a acarinhou.

— Você fala como se os visitasse sempre. — respondeu, irritada com tudo aquilo. Consigo mesma por ter negligenciado os cavalos que tanto amava, por ter chegado aos trinta com um casamento fracassado e um noivado cancelado. Com Will, por ser o cara perfeito, mas vir com um monte de merda de brinde. Com Demarchelier, pela crise alérgica de última hora. Com Miranda Priestly, por ter contratado seu ex-marido dentre todos os fotógrafos disponíveis no país. E, acima de tudo, por ter de lidar com James no dia em que deveria estar se casando com Will. 

— Eu venho a cada duas semanas. — ele falou, tranquilo, soando quase como se fosse culpa dela não terem ido à fazenda nos últimos meses de casamento.

Anne quis estrangulá-lo.

— Eu não acredito que de todos os fotógrafos nessa merda desse país tinha que ser justo você! — bufou, virando totalmente o corpo para encará-lo.

— Eu só estava querendo ajudar, Anne. — ele se virou também, ficando de frente para ela. Um confronto direto, cara a cara.

— Ah, conta outra, James! Se você quisesse mesmo ajudar teria inventado uma desculpa qualquer e dito para Miranda chamar outro fotógrafo.

James ficou em silêncio, os olhos verdes fixos nos dela. Então ele suspirou, passando uma das mãos pelos cabelos, e caminhou de um lado para o outro.

— É, você está certa. Eu... Eu queria saber como você estava. Cancelar um noivado deve ser difícil... Eu só... Só queria estar por perto caso você precisasse de um amigo.

Conhecia James há tempo o bastante para saber quando ele estava mentindo, mas escolheu ignorar todos os traços da mais pura sinceridade na voz, na postura e no rosto dele. Estava pouco se lixando se era verdade ou não; ele não tinha o direito de agir como se ainda fossem melhores amigos. Não agora, não mais.

— Vai se foder, James! — falou, bem mais alto do que esperava. Raio se encolheu, afastando-se dela. — Se você queria me ver na merda, muito bem, conseguiu! Mas não me venha com essa de amigo, nós não somos amigos há muito tempo. — sua voz falhou e seus olhos se encheram de lágrimas outra vez, mas não deixou que elas caíssem — Muito tempo! 

James se aproximou, estendendo os braços para o que Anne imaginou que seria um abraço, mas ela o empurrou. Empurrou com toda a força em seu corpo e, mesmo assim, ele mal saiu do lugar, então ela o empurrou de novo e de novo e de novo. Até que não mais conseguiu impedir as lágrimas de caírem, o que só aumentou sua raiva e fez com que os empurrões se transformassem em socos no peitoral do homem à sua frente. 

— POR QUE VOCÊ ESTÁ AQUI? — gritou, socando o peito dele com mais força.

— PORQUE EU QUERIA TE VER VESTIDA DE NOIVA! — ele respondeu; o rosto contorcido em uma expressão dolorosa, enquanto se afastava alguns passos, apenas o suficiente para que ela não mais conseguisse atingi-lo. Não que precisasse, o choque causado fora o suficiente para paralisá-la. — Tá aí a sua resposta. Satisfeita?

Ele se virou, ficando de costas para ela, correndo as mãos pelos cabelos novamente, a respiração pesada.

E então, Anne não estava mais em Maryland. Estava em uma capela em Las Vegas, vestida em uma camiseta dos Rolling Stones e uma calça jeans rasgada — a única roupa que tinha no carro, além do vestido preto que usara horas antes e que não voltaria a usar nunca mais —, dizendo seus votos em frente a um falso Elvis.

O relincho de um dos cavalos a trouxe de volta ao presente em tempo de ver James caminhar até a saída do estábulo. Ele parou, hesitante, e ela teve certeza de que ele também havia sido transportado para aquela noite de março, treze anos antes, quando, ainda de costas para ela, ele disse:

I guess I'll never know the reason why. (Acho que nunca vou saber o porquê).

Uma frase e lá estava ela outra vez, em Las Vegas, deixando a capela ao lado de James, alianças de papel improvisadas nos dedos anelares, pois não tinham dinheiro para comprar nem mesmo as de plástico, enquanto Elvis (o verdadeiro) cantava ao fundo.


I guess I'll never know the reason why

You love me like you do

That's the wonder

The wonder of you


* * *

Will montaria Biscoito e Anne montaria Bolacha, ambos os cavalos de um marrom escuro e ambos mais dóceis do que seus companheiros de estábulo. O problema era que montar Bolacha estava se provando uma missão impossível. Normalmente teria apoiado o pé esquerdo na pedaleira, segurado a sela, alçado o corpo e transpassado a perna direita sobre o animal sem qualquer esforço. Mas, com toda aquela parafernália que vestia, era impossível. As mangas delicadas limitavam os movimentos de seus braços e a enorme cauda lhe tirava toda a agilidade. Depois de alguns minutos lutando contra o vestido, com a ajuda de Will e mais dois rapazes, finalmente estava em cima da égua. E, de imediato, nada mais parecia tão ruim. Era a magia de montar. A conexão entre ela e o cavalo, o voto silencioso de confiança entre os dois.

O sol se punha no horizonte enquanto ela e Will cavalgavam, lado a lado, pelo imenso pasto. Montar Bolacha não era o mesmo que montar Estrela, mas, ainda assim, todos os seus problemas desapareceram ao ritmo do galope. Os olhos fechados, o vento batendo contra seus cabelos, a sensação de liberdade que há tanto tempo não sentia. Soltou a rédea e abriu os braços, livre para voar. 

Desejou poder cavalgar para além dos limites da fazenda, para um lugar longe de tudo, onde só existissem ela, o cavalo e a natureza. Se estivesse montando Estrela, talvez o tivesse feito. Estrela a acompanharia aonde quer que fosse, o tipo de confiança plena e inocente que só poderia vir de um animal. Bolacha, no entanto, teria suas reservas quanto a segui-la pelo mundo a fora, tendo de encarar os perigos que habitavam para além da fazenda. Abriu os olhos e segurou as rédeas, dando a Bolacha o sinal para que diminuísse a velocidade até que o vento não mais soprasse seus cabelos.

Fizeram o meio-giro e, só ao perceber a atenção de todos sobre ela, lembrou-se de que não estavam sozinhas. Os olhos de James a puxaram para si, como sempre faziam. Havia, no entanto, algo de diferente neles. Olhavam para ela como nunca a haviam olhado antes. Um olhar que Anne não conseguia ler ou decifrar.

Ela se aproximou de onde todos estavam e ele desviou o olhar.

— Conseguimos as fotos. — ele disse, tirando a câmera do pescoço e se afastando. — Podemos ir para a pousada.

Will desmontou Biscoito e, com um lindo sorriso no rosto, ajudou-a a desmontar também.

— Você estava incrível. — ele disse, abobalhado — Nunca te vi tão... Livre. E tão linda. 

Ele depositou um beijo em sua testa e Anne passou os braços ao redor de sua cintura, em um abraço que foi prontamente correspondido. Estar naquele lugar fazia com que ela sentisse falta de muitas coisas, porém, mais do que tudo, sentia falta de um amigo. 

* * *

Quando voltaram à pousada, já à noite, o local estava muito diferente de como o haviam deixado pela manhã. O jardim dos fundos estava adornado com flores e luzes, e, ao centro, em uma bela mesa, erguia-se majestosamente o bolo de cinco andares que haviam levado meses para escolher. Um lembrete lindo e cruel de que Anne jamais teria um final feliz. 

Por duas vezes tivera a chance (mais do que a maioria das pessoas), com dois homens incríveis, e tinha desperdiçado as duas. E nem tinha a quem culpar, eram apenas as circunstâncias. Fatores que estavam fora de seu controle. Com Will, pelos menos. As coisas tinham sido diferente com James; com ele, as circunstâncias não estavam tão fora de controle assim. O problema foi só terem se dado conta daquilo quando já era tarde demais, quando já estavam em um caminho sem volta. 

Finais felizes não eram para todo mundo, também não eram tão simples quanto a ficção fazia parecer. Finais felizes não eram um mero resultado do acaso, requeriam esforço e dedicação, um trabalho contínuo. Se ela e James tivessem se empenhado mais, se tivessem percebido seus erros antes de tudo desandar, teriam tido um final feliz. 

Uma música empolgante tomou conta do jardim e Anne se encontrou outra vez diante dos holofotes, a câmera acompanhando cada gesto seu ao esbanjar uma felicidade que era em parte pelo álcool, em parte por puro desespero. As lentes capturaram o momento em que Will estourou a champagne e depois, quando ambos se posicionaram atrás da bela mesa, e, com sorrisos alegres, sujaram os rostos um do outro de bolo. Escondidos atrás da equipe, seus pais riram, mas Anne notou que a mãe enxugava os olhos. Lágrimas de emoção por vê-la vestida de noiva, mas também lágrimas de pesar por ela ser uma noiva em fuga. 

— Acabamos, pessoal! — James disse alto. 

Palmas e gritos tomaram a pousada e logo uma pilha com dezenas de caixas de pizza foi posta na mesa junto ao bolo. Anne abriu a primeira delas e correu os olhos pelo jardim; marguerita era a favorita de James, mas ele já não estava em lugar nenhum.

* * *

Antes de tirar o vestido, Anne se olhou no espelho uma última vez. A maquiagem borrada, o cabelo bagunçado, a barra do vestido suja de terra. Parecia saída de um tornado e a verdade era que sentia como se tivesse sobrevivido a um. Contorceu o corpo para alcançar o zíper e, depois de muita luta, caiu ofegante na cama, o vestido a seus pés, em um desfecho bem diferente do que ela havia imaginado para aquela noite. Aquele deveria ser o dia mais feliz de sua vida, não um faz de conta.

Criou coragem para levantar da cama e seguiu até o banheiro. Foi só quando seus músculos relaxaram sob o toque da água quente, que ela se deu conta da tensão que carregara nos ombros o dia inteiro. Fechou os olhos, mas foi impossível se livrar dos milhares de pensamentos em sua mente. Queria acordar na manhã seguinte sem precisar lidar com todos os sentimentos que guardava no peito. A dor pelo término com Will, a solidão e a certeza de que não estava destinada a um final feliz. Pelo menos não aquele tradicional, que significava ter ao seu lado alguém com quem crescer e envelhecer, com quem assistir às mudanças de estações e com quem conversar sobre ‘os velhos tempos’. Filhos também pareciam fora de seu futuro. O seu final feliz consistiria em uma carreira bem-sucedida, o nome na lista de mais influentes da Times, e, após um longo dia de trabalho, voltar para uma casa silenciosa e vazia. 

Talvez devesse voltar para Maryland. Voltar a morar na pousada com os pais. Poderia facilmente comandar a empresa à distância, as reuniões com os clientes mais importantes eram em sua maioria por videoconferência. E tinha Maggie em Nova Iorque, que poderia comandar a sede por ela para que nada saísse dos trilhos. Poderia alugar uma salinha no centro de Hale e--

Ben surgiu em seus pensamentos; se soubesse que ela estava pensando em voltar a morar na pousada, ele a agarraria pelos ombros, olharia fundo em seus olhos e lhe diria com todas as palavras que ela era uma idiota. Sorriu, sempre sorria quando pensava em Ben. Então o sorriso se desfez e o vazio deixado por ele se tornou avassalador. Tudo seria tão diferente se ele estivesse ali. Mas ele não estava. Não estava já havia treze anos. 

Encheu o pulmão de ar, lutando contra o vazio e contra a saudade. Levantou da banheira, vestiu o pijama e olhou em volta. O quarto, cheio de recordações do passado, tornava o presente ainda mais difícil. Calçou um par de chinelos e, sem fazer barulho, desceu as escadas. A casa estava em total escuridão, mas os dezoitos anos caminhando por aqueles mesmos corredores (muitas vezes em uma escuridão similar àquela) lhe permitiram chegar à cozinha sem esbarrar em nada. Abriu a geladeira e a luz do eletrodoméstico preencheu o cômodo. Pegou o que havia sobrado do bolo e depois um garfo, então se sentou na bancada e acendeu o pequeno abajur que sua mãe mantinha ali, dando a primeira garfada. 

— Imaginei que fosse te encontrar aqui. 

Ela se virou e sorriu para Will, que pegou um garfo no armário e se sentou ao seu lado. 

— Como você está? — ele perguntou, comendo um pedaço de bolo.

Ele tinha olheiras embaixo dos olhos e sua postura parecia derrotada. Aquele deveria ter sido o dia mais feliz da vida dele também. 

— Melhor agora. — ela respondeu, e era verdade. 

Will sorriu e gesticulou para o bolo. 

— Nós fizemos uma ótima escolha. — ele disse, com a boca cheia.

— Uhum. — ela concordou, comendo mais.

Um silêncio tranquilo e confortável caiu entre eles, até Anne quebrá-lo.

— James é meu ex-marido.

Will parou, o garfo a meio caminho da boca, e virou o rosto para encará-la, os olhos arregalados. Ele conhecia a história, sabia que Anne havia se casado com o namorado de adolescência em Las Vegas.

— James? O fotógrafo, James?! Ele é James Fraser, seu ex-marido?! — a mão com o garfo repousou sobre a bancada e Will pareceu processar a informação. — Porra.

— Pois é.

— Isso explica o jeito que ele te olhava. 

— Como se quisesse me jogar de um penhasco? — Anne riu.

— Não. — Will balançou a cabeça devagar, olhando fundo nos olhos dela, a voz triste — Como se tivesse desperdiçado a chance da vida dele. Eu sei, porque é como eu me sinto também. 

Anne abaixou a cabeça, descansando a testa na bancada de mármore.

— Eu odeio tudo isso.

— Vai ficar tudo bem. — Will fez um carinho gentil em suas costas. — Nós vamos ficar bem.

Mais um silêncio, então ele disse:

— Miranda Priestly deve nos odiar muito mesmo. Chamar o seu ex-marido para fazer as fotos do nosso não-casamento?! É cruel.

Anne riu, mas manteve a cabeça na bancada, assim como Will manteve o carinho em suas costas.

— Ele parece um cara legal. 

Ela ergueu a cabeça e sorriu.

— Ele disse a mesma coisa sobre você.

Passaram o resto da madrugada comendo o bolo de casamento e conversando.  Conversaram sobre Daniel Hill, sobre cavalos, sobre Los Angeles. Sobre suas carreiras, sobre a vida. Sentados na bancada da cozinha, comendo bolo até a barriga doer, selaram uma promessa, não de matrimônio, mas de amizade. A promessa de que poderiam contar um com o outro sempre e para sempre, apesar do tempo e da distância. Uma promessa sincera e que seria devidamente cumprida pelos dois.

* * *

Will voltou para Los Angeles na manhã seguinte, a despedida foi mais difícil do Anne imaginou que seria. Até ali, mesmo com o término do noivado, as coisas não haviam mudado muito. A partir dali, no entanto, daquele abraço, tudo mudaria. Will não seria mais a primeira pessoa para quem ela ligaria quando tivesse alguma novidade para contar, não mais ouviria seu ‘boa noite’ todas as noites antes de dormir (mesmo que pelo telefone). Will seria para sempre um amigo, mas a partir dali seus caminhos deixavam de ser um só. Aquela era a bifurcação na estrada, o ponto em que seus caminhos divergiam. Estradas paralelas, mas distintas.

Sentada na caminhonete velha de seu pai, Anne seguiu pelas ruas que lhe eram velhas conhecidas. Entrou na pequena estrada de terra e parou diante da porteira onde se lia ‘Fazenda Fraser’. Desceu do carro, sorrindo com a gostosa sensação de familiaridade ao abri-la, e, depois de entrar com a caminhonete, voltou para fechá-la. Gostava que os pais de James mantivessem a simplicidade e o jeito rústico da fazenda, apesar de terem sido os primeiros a aderirem às placas de energia solar que ela havia desenvolvido. Tudo na fazenda que requeria energia elétrica era abastecido pelas placas que ela criara, mas, mesmo com a tecnologia de ponta, o local preservava sua essência rural e campestre. Era o equilíbrio perfeito entre aceitar a evolução dos tempos e manter as raízes.

Estacionou perto da casa e logo avistou a mãe de James. Grace desceu os degraus da varanda, um sorriso aberto no rosto, e a envolveu em um abraço apertado. Um abraço muito parecido com os de Ben. Respirou fundo, sentindo a ternura da mulher que era como uma segunda mãe, novamente se arrependendo por ter ficado tanto tempo longe. Grace se afastou, segurando seu rosto nas mãos e a olhando nos olhos.

— Queria ter estado aqui ontem, mas tive que trabalhar. Queria tanto ver você vestida de noiva. — a mulher disse de um jeito maternal.

— Não era de verdade.

— Mesmo assim. Jamie disse que você estava linda. Ele passou a manhã toda no quartinho de revelação e ele não usava aquele quartinho desde que vocês se separaram.

Anne sorriu, sem jeito, sentindo as bochechas esquentarem. 

— É bom ter ver, Annie. — Grace a abraçou outra vez. — Sentimos saudades. 

— Eu também. Pensei em passear um pouco com Estrela. 

— Claro. Volte aqui quando acabar, tomamos um chá e comemos um pedaço de bolo. Melhor ainda, você fica para o jantar!

— Minha mãe me mata se eu não jantar em casa, mas um chá e um pedaço de bolo vai ser ótimo.

— Combinado. — Grace sorriu.

Anne se afastou, caminhando em direção ao estábulo. Assim como no dia anterior, Estrela se agitou ao vê-la. Foi até a égua, pegando alguns torrões de açúcar que trazia no bolso do casaco, e lhe deu. Virou-se para dar alguns torrões para Raio e Trovão, mas o cavalo negro não estava ali. Fez um carinho em Raio e disse a ele que voltaria no dia seguinte para levá-lo para um passeio. Selava Estrela, quando o coração pesou; ela e James nunca deixavam Raio sozinho no estábulo. Sempre o selavam e saíam com os três cavalos, alternando quem voltava montado no cavalo branco. Então selou Raio e prendeu a rédea dele à de Estrela, assim cavalgavam juntos. 

Deduzindo que James havia ido até o riacho com Trovão, seguiu, montada em Estrela, pela direção oposta, até as macieiras. Deixou os cavalos ditarem o ritmo, admirando a paisagem, aproveitando o passeio. Não tinha pressa, o oposto disso. Tinha todo o tempo do mundo. Aos poucos, as macieiras surgiram no horizonte, e, com elas, duas silhuetas inconfundíveis. Seu coração acelerou e ela puxou as rédeas de Estrela. Raio, no entanto, recusou-se a voltar. Marchou feliz e imponente até as árvores, levando Estrela consigo.

James se levantou ao vê-los, limpando a grama da calça, e se aproximou para fazer um carinho nos cavalos.

— Eu não queria atrapalhar. — disse Anne. — Pensei que vocês estivessem no riacho, por isso vim para cá. Mas já estamos voltando. 

— Não precisa ir. — ele colocou as mãos nos bolsos. —Tem espaço o suficiente para nós cinco aqui. 

Ele a olhava com um sorriso tímido, as covinhas apenas parcialmente à mostra, e ela sentiu uma vontade inexplicável de ficar. De sentar ao lado dele na grama e sentir o vento no rosto enquanto ouvia o balançar das folhas. A razão lhe dizia para voltar, mas, em vez disso, ela desmontou Estrela e se sentou à sombra de uma das macieiras.

James se sentou no mesmo lugar em que estava antes e ficaram em silêncio, admirando a paisagem.

— Às vezes eu me pego imaginando como as coisas seriam se Ben estivesse aqui. — a voz dele era suave, um pouco mais do que um sussurro, como se não tivesse certeza sobre dizer aquelas palavras em voz alta.

Anne se virou para olhá-lo, mas ele tinha os olhos fixos no horizonte. 

— Ele estaria furioso com a gente. — ela respondeu.

James sorriu e concordou, ainda sem olhá-la.

— É, mas... Não sei. Acho que não teríamos nos separado se ele estivesse aqui. 

— Se ele estivesse aqui, nós não teríamos nem nos casado.

James se virou para ela, os olhos verdes magoados, e Anne desviar o olhar.

— Nós fizemos as coisas no impulso. — ela continuou, os olhos fixos nos cavalos — Não estávamos preparados para um casamento. Estávamos pensando em como a vida é curta e esquecemos que às vezes a vida é longa. 

Três de março ainda era o dia mais difícil do ano, mas, em treze anos, nenhum deles fora tão difícil quanto aquele primeiro. A manhã que se arrastara em um velório interminável, as horas que pareciam não passar. Presa em um vestido preto que pinicava seu corpo sem misericórdia, Anne chegara a acreditar que aquele dia não terminaria nunca. Até James ter a ideia de sair dali. Dirigiram sem destino, querendo fugir da perda que os consumia. O sol se punha, pintando o mundo em tons de laranja que ficavam entre o melancólico e o sereno, quando ele disse as palavras: Casa comigo. Dirigir até Las Vegas e se casar não havia sido o mais sensato a se fazer — ela tinha acabado de perder o melhor amigo, ele tinha acabado de perder o irmão — mas nada jamais lhe parecera tão certo quanto aquele ‘sim’. 

— Você fala como se o nosso casamento tivesse durado sete dias e não sete anos. — disse James, o ressentimento claro em sua voz, enquanto se levantava. Tinha uma das mãos na sela de Trovão, pronto para montá-lo, quando a olhou mais uma vez. — Você se arrepende?

— Não. — Anne respondeu sem hesitar. Entrar naquela capela lhe devolvera a esperança que a morte repentina de Ben havia lhe roubado.

O olhar entre eles se demorou por alguns segundos, um milhão de memórias passando entre os dois, um milhão de sentimentos, então James montou em Trovão e cavalgou para longe.

* * *

A casa dos Fraser não havia mudado quase nada. Novas fotografias se espalhavam pelas paredes, mas os antigos retratos ainda continuavam ali. Uma das fotografias chamou a atenção de Anne e ela se aproximou da moldura sobre o sofá. Estrela, Raio e Trovão soltos no pasto, o céu se fechando em uma nuvem grande e cinza sobre eles. Uma tempestade que se aproximava. Mas, por entre a nuvem, raios de sol escapavam, iluminando a paisagem. 

A chaleira apitou e Anne foi até a cozinha, onde Grace preparava o chá. Sentaram-se à mesa, conversando sobre amenidades, colocando o assunto em dia sem tocar em pontos mais delicados. Quando terminaram, Anne se levantou e olhou para a fotografia acima do sofá outra uma vez. 

— James está em casa? — perguntou e um pequeno sorriso se abriu no rosto de Grace.

— No quartinho de revelação. — a mulher gesticulou, indicando a direção, e Anne concordou.

Conhecia aquela casa tão bem quanto a pousada dos pais. Subiu as escadas, passando pelo quarto de James e depois pelo de Ben. Perguntou-se se o quarto do melhor amigo continuaria igual, mas não se atreveu a entrar, parecia uma invasão à privacidade da família. O quartinho de revelações era a última porta no corredor; antes de James se interessar por fotografia, era apenas o quarto da bagunça. Tirar toda a tranqueira e transformá-lo em um pequeno estúdio de revelação fora um trabalho árduo, mas James enfrentara a bagunça com um sorriso no rosto e, quando terminaram de arrumar o lugar, os olhos dele brilhavam de um jeito que ela jamais esqueceria.

Anne bateu à porta e a resposta suave veio em seguida.

— Pode entrar. 

James recolhia as fotografias já secas, estendidas nos varais que cruzavam o cômodo. Algumas coloridas, algumas em preto e branco. Anne se aproximou, admirada. Estavam lindas, mas aquilo não era novidade. Até mesmo uma folha caída pelas calçadas sujas de Nova Iorque se transformava em uma bela obra de arte sob as lentes e o olhar atento de James. Ele enxergava beleza onde ninguém mais via, detalhes despercebidos pelo resto do mundo, e os capturava com maestria. Sorriu, ao ver uma fotografia em particular. Ela cavalgava de olhos fechados, os braços abertos, os cabelos ao vento. Desviou os olhos da foto e os focou em James.

— Ainda odeia fotografia digital?

— Não tanto quanto antes. — ele encolheu os ombros, toda sua atenção na tarefa à frente.

Depois de guardar as fotos com cuidado, ele pegou um novo rolo de filme. Sem que ele precisasse pedir, Anne apagou a luz florescente e acendeu a luz vermelha. Seus olhares se cruzaram na penumbra e compartilharam um sorriso tímido. Haviam feito aquilo tantas vezes que a naturalidade do apagar as luzes lhes aqueceu o peito, era como voltar para casa.

A revelação analógica consistia em um processo longo, com várias etapas que precisavam ser cumpridas à risca e com cuidado. Primeiro o tratamento do filme, quando até mesmo a luz vermelha poderia estragar tudo. Depois o banho de revelador, então interruptor e, por fim, fixador. A lavagem e secagem do filme, as provas de contato. Fizeram a maior parte do processo em silêncio, em uma dança de passos tão bem coreografados que, mesmo no escuro, reconheciam cada movimento um do outro. 

Após a ampliação das imagens e a transferência delas do filme para o papel, chegaram à parte favorita de Anne. James despejou os produtos em travessas separadas e entregou a ela o utensílio que usava para manejar as fotos. Ela sorriu, ansiosa, um olhar cúmplice entre eles, as covinhas surgindo discretas no rosto de James. 

Anne depositou o papel fotográfico no líquido revelador e assistiu à imagem ganhar vida. Mais uma vez a familiaridade lhe aqueceu o peito. Não era apenas o quarto, mas o momento. As incontáveis vezes em que fizera aquilo com James. Sentia saudades daquele quartinho escuro, daquele momento que era só deles e que parecia sempre um tanto mágico.

— As fotos ficaram lindas. — disse, após revelar, interromper, fixar e lavar todas as fotografias.

— Obrigado. — James respondeu, pendurando-as no varal.

A reserva na voz dele dissipou a familiaridade do momento e uma estranheza tomou o ambiente. A percepção de que não eram mais os mesmos, de que eram quase dois estranhos, foi assustadora. Anne mexeu as mãos, desconfortável, e, sem saber o que fazer com elas, as colocou no bolso. Um nó se formou em seu estômago pelo que havia dito mais cedo. Por ter soado como se o casamento deles tivesse sido um erro, quando foi o oposto daquilo. Tinha sido feliz ao lado de James, uma felicidade como não sentia desde então. 

Por muito tempo tivera a certeza de ter encontrado o seu final feliz. Aos poucos, porém, suas carreiras ganharam prioridade e o tempo juntos foi deixado em segundo plano, esquecido. Enquanto James trabalhava dia e noite para consolidar seu nome no mundo da fotografia e, para isso, passava cada vez mais tempo viajando, indo aonde quer que houvesse um trabalho disponível; ela passava cada vez mais horas imersa em testes e cálculos para a criação e desenvolvimento do método de energia sustentável que futuramente viria a ser a CleanPower. 

Priorizar a carreira rendera aos dois reconhecimento, prêmios e milhões dólares em suas contas bancárias, mas a um custo maior do que o dinheiro poderia pagar. Entre as viagens e as horas de pesquisas, passavam semanas sem trocar mais do que um ‘boa noite’ quando caíam exaustos na cama ou um ‘bom dia’ pela manhã, antes de voltarem ao trabalho. Sem que percebessem, um abismo se criou entre eles. As conversas diminuíram, as frustrações aumentaram.

 — Sobre o que eu disse mais cedo... — ela começou, os olhos fixos no chão — Eu só... O que eu quis dizer foi que, se o Ben estivesse aqui, nós não teríamos nos apressado em nos casar. E, se não tivéssemos nos apressado, talvez tivéssemos lidado melhor com tudo. Talvez tivéssemos tido maturidade para nos dedicarmos às nossas carreiras sem negligenciar o nosso casamento.

O silêncio que se seguiu foi enervante. Anne queria olhá-lo, mas, por medo do que encontraria no rosto de James, não o fez.

— Talvez não tivéssemos esquecido que estar juntos era a prioridade. — ele disse por fim, a voz apenas um fio, e ela ergueu os olhos.

— É...

Olharam-se em silêncio, um olhar cheio de significado, cheio de entendimento. 

— Você ainda está usando o anel de noivado. — James comentou, quebrando o instante de cumplicidade e voltando sua atenção para as fotografias.

Anne olhou para a mão esquerda, onde ainda estava o anel que simbolizava seu compromisso com Will.

— Não queremos que a notícia vaze antes da matéria sair. — ela encolheu os ombros, um pouco constrangida por sua vida ter se transformado em um espetáculo público.

— Deve ser difícil viver assim. — James apoiou as costas na mesa; os braços cruzados, mas a postura amigável. — Sem o controle da própria vida.

— Foi o motivo de eu terminar o noivado. — ela suspirou. — Passei muito tempo dizendo para mim mesma que ia passar, que íamos conseguir levar uma vida normal, até perceber que aquele seria o nosso normal...  E eu não ia aguentar uma vida inteira daquilo.

— Você quis sair de Hale porque não aguentava as fofocas de cidade pequena. — ele sorriu, nostálgico, os olhos verdes brilhando com a lembrança. — Queria ir para Nova Iorque para se misturar com a multidão.

— Pois é. — Anne riu, levando uma mão ao rosto — E acabei na capa das revistas de fofoca do mundo todo. Claramente meu plano falhou... Não quero nem ver como vai ser quando a notícia sair. Minha vida vai virar um inferno. 

— Se isso acontecer, é só voltar para casa. Para Hale, para pousada, para fazenda. Por uns tempos, pelo menos, até a poeira abaixar. Estrela iria gostar.

— É... E é bem melhor do que descolorir o cabelo na esperança de não ser reconhecida na rua. — fez uma careta.

James riu alto, uma gargalhada que a pegou de surpresa, fazendo seu coração bater de um jeito que não acontecia há muito, muito tempo. 

— Tenho certeza de que vai continuar linda.

A naturalidade nas palavras, na forma com que ele as disse, fez borboletas dançarem em seu estômago, como se nada tivesse mudado. 

Como se ainda fossem eles.

* * *

Anne respirou fundo, intimidada pela quantidade de opções à sua frente. Tirou uma foto da prateleira e mandou para Maggie, a melhor amiga e encarregada de pintar seus cabelos. A resposta veio em capslock e com uma série de emojis reforçando o quanto aquilo era uma PÉSSIMA IDEIA.  

Antes que pudesse responder, um grito estridente soou ao seu lado. Assustada, Anne olhou em volta, procurando por alguém que tivesse se machucado. Em vez disso, deu de cara com uma adolescente que a olhava com olhos arregalados e a boca escancarada, movendo pés e braços sem sair do lugar.

— AI. MEU. DEUS! Anne Madeleine Brown! — a garota soltou outro grito estridente e Anne se encolheu. — Eu A-MO você e o Will! Tipo, demais! Estou tão feliz com o casamento! Já quero os bebês, por favor! 

O editorial da Runway chegaria às bancas na manhã seguinte. E ali estava ela, parada em frente à prateleira de descolorantes em um mercadinho no Bronx, enquanto uma desconhecida gritava para quem quisesse ouvir que ela e o ex-noivo formavam o CASAL PER-FEI-TO. Sentiu-se culpada pelo colapso nervoso que a garota teria na manhã seguinte. Poderia apostar que haveria lágrimas. Muitas lágrimas. Ela mesma queria chorar. 

— Você vai pintar o cabelo? — a garota abriu um grande sorriso. — Vai ficar linda! Mais linda ainda! Eu uso essa aqui!

A garota pegou uma marca com um nome estranho e lhe entregou.

—Espera! Mas você vai pintar o cabelo antes do casamento? — os olhos da garota se arregalaram em horror.

— Não, não. — Anne se apressou em dizer — É para uma amiga, ela perdeu uma aposta. 

— Ah, bom. — a garota colocou a mão sobre o peito, aliviada. — Mal posso esperar pelas fotos, tenho certeza de que vai ser lindo. Você e o Will são perfeitos um para o outro. 

Anne sorriu, mas queria mesmo era vomitar. Concentrou-se em inspirar e expirar, esforçando-se para não ter uma crise existencial no meio do mercado na frente de uma estranha. Seu celular apitou com uma nova mensagem e ela fechou os olhos, grata pela interrupção.

— Eu tenho que ir. — gesticulou para o aparelho, sem nem ao menos ver quem era. Provavelmente Maggie, tentando convencê-la a não fazer nenhuma loucura. — Foi um prazer te conhecer...

— Carly! — a garota respondeu alegremente.

— Foi um prazer te conhecer, Carly. 

Sem rodeios, a garota a envolveu em um abraço tão sincero e apertado que Anne quase desabou.

— Obrigada pelo carinho, Carly. De verdade. — disse e então saiu correndo, antes que começasse a chorar. 

Por sorte o caixa estava vazio e, depois de lutar contra o zíper da carteira, Anne entregou uma nota de cem à moça e foi embora sem esperar pelo troco. Caminhou a passos largos, focada em inspirar e expirar. Ao chegar em casa, jogou-se de barriga para baixo no sofá e escondeu o rosto em uma das almofadas. 

Seu celular apitou com mais uma mensagem e só então ela percebeu que ainda segurava, com força, o aparelho em uma mão e o descolorante na outra. Colocou a tinta no chão e se virou no sofá, ficando de barriga para cima. A mensagem mais recente era de Maggie, mas foi a mensagem anterior que chamou sua atenção, a que recebera enquanto estava no mercado. Era James. 

Anne vinha se esforçando para cumprir a promessa de não abandonar os cavalos, voltava a Hale quase todos os fins de semanas. Na maioria das vezes encontrava James por lá, mas, quando não o encontrava, enviava algumas fotos dos cavalos para ele. E, quando o trabalho a impedia de deixar Nova Iorque, James fazia a mesma coisa. As trocas de mensagens se resumiam a fotos de Estrela, Raio e Trovão, além de Biscoito e Bolacha. Nada que fugisse daquilo.

Abriu a mensagem e sorriu com a foto de Estrela. A égua estava em pé, no pasto aberto, o céu alaranjado ao fundo. Uma imagem de tirar fôlego. Balançou a cabeça, o sorriso ainda em seu rosto. Até as fotografias que James tirava pelo celular ficavam lindas. Junto com a imagem, pela primeira vez desde que haviam começado a trocar aquelas mensagens, ele escrevera algo. 


Estrela disse que amanhã vai ser um belo

dia para um passeio pelo riacho.


Anne admirou a foto por mais alguns segundos, então foi até o quarto. Colocou uma muda de roupas em uma pequena mala e voltou à sala para olhar o horário dos trens até Maryland. Ao caminhar de um cômodo para o outro, o reflexo do diamante em seu anelar bateu em um dos espelhos, chamando sua atenção. Ela fechou os olhos, inspirando e depois expirando todo o ar de seus pulmões devagar. Voltou ao quarto e pegou a caixa rosa que ficava escondida no fundo do armário. 

Sentou-se no chão e, ao retirar a tampa da grande caixa, foi inundada por memórias da infância, adolescência e início da vida adulta. Retirou o anel de noivado do dedo (Will insistira para que ela ficasse com ele) e o guardou em sua caixinha de veludo. Depois, colocou dentro da grande caixa onde guardava todas as suas lembranças mais preciosas. Estava prestes a tampá-la, quando uma polaroide chamou sua atenção. Ben ria, uma de suas risadas escandalosas, enquanto Raio mordia sua orelha. A última fotografia tirada do melhor amigo. Pegou a polaroide com cuidado e, ao fazê-lo, a pequena aliança de papel que se escondia embaixo da foto se revelou. Então, apesar das lágrimas que rolavam por seu rosto, um sorriso surgiu em seus lábios.

* * *

Na manhã seguinte, Anne acordou em seu antigo quarto, na pousada dos pais. Tomou um banho e enviou uma mensagem para Maggie, dizendo que desligaria o celular e, caso precisasse falar com ela, ligasse na pousada. Enviou uma mensagem semelhante a Will, que também havia buscado refugio na casa dos pais, e desceu para tomar café. 

Hale lhe trazia uma paz que jamais conseguira encontrar em nenhum outro lugar. Talvez fosse porque poucas coisas mudavam na cidadezinha e nunca as coisas importantes. Seu pai ainda fazia as mesmas piadas, sua mãe ainda desenhava carinhas com morango e bananas em suas panquecas. Era um pouco como voltar no tempo, para uma época anterior às desilusões, às perdas, aos corações partidos. Era como recuperar a inocência, como voltar a acreditar que tudo ficaria bem. 

Despediu-se dos pais com um beijo estalado em suas bochechas e seguiu com a caminhonete velha até a fazenda Fraser. James selava Trovão, quando ela entrou no estábulo. Ele se virou para ela e sorriu, um sorriso simples, feliz. Anne retribuiu o sorriso e se pôs a selar Estrela. Fizeram o serviço em silêncio, uma tranquilidade agradável entre eles, e, ao terminarem, levaram os três cavalos para fora do estábulo. James montou Trovão, ela montou Estrela e, com Raio os acompanhando, galoparam até o riacho. Exceto pelo silêncio, era como nos velhos tempos. 

Raio levava uma pequena cesta atrelada à sua sela, dentro dela havia um lençol e algumas frutas, além da câmera fotográfica de James e do livro que Anne estava lendo. Ao chegarem ao riacho, estenderam o lençol e, enquanto os cavalos se divertiam na àgua, sentaram-se. Anne com o livro, James com a câmera. Passaram horas daquele jeito,  apreciando o simples fato de estarem ali. Até ela se render a um cochilo e acordar com um beijo gelado em seu rosto. Riu, ao abrir os olhos e dar de cara com um focinho negro como a noite. 

— Trovão. — James disse, a voz firme, mas com um sorriso no rosto. 

O cavalo fez um último carinho em Anne (encostando o focinho no rosto dela de um jeito gentil e delicado) e se afastou. Ela admirou o corcel por alguns instantes, então olhou para o homem sentado a alguns passos de distância.

— James. 

Ele se virou para ela, os olhos verdes surpresos. Anne moveu a cabeça, indicando para que ele se aproximasse. Quando ele se sentou ao seu lado, o cenho levemente franzido em confusão, ela abriu o livro que lia e tirou de lá a polaroide que encontrara no dia anterior.

James pegou a fotografia e o ar ficou preso em seus pulmões. Quando voltou a respirar, sua respiração estava mais pesada, carregada. Segurava as lágrimas.

— Eu... — ele disse, a voz falhando — Eu procurei por essa foto em todos os lugares. Pensei que tivesse perdido.

— Estava comigo. — Anne disse em um pedido de desculpas. 

Os olhos verdes de James brilhavam, marejados, com um misto de alegria e tristeza. Uma combinação comum a tudo que envolvia Ben.

— Obrigado. — ele disse, admirando a imagem em suas mãos por um longo tempo. Então ele se levantou e a guardou com cuidado na bolsa onde guardava a câmera.

— Eu encontrei a minha aliança também. — Anne disse, sem saber o porquê. — A de papel. 

Um lindo sorriso se desenhou no rosto de James, as covinhas ficando à mostra, e ela se esqueceu do mundo. Seu coração aqueceu e acelerou e pulou uma batida, tudo ao mesmo tempo; fazendo com que Anne se desse conta de que sentira falta não apenas da fazenda e dos cavalos, mas de James. De sua companhia, de seus sorrisos, suas risadas, seus olhares. Dos momentos que eram só deles e de todas as sensações que ele lhe causava.  

— Eu tenho a minha também. — ele disse, deitando ao lado dela no lençol, os braços atrás da cabeça e os olhos fixos no céu.

* * *

Quando Anne ligou o celular naquela noite, ao contrário do que esperava, não havia centenas de ligações perdidas. Apenas duas mensagens; uma de Maggie, elogiando as fotos do editorial, e uma de Will, perguntando como o dia dela havia sido. Digitou uma resposta, mas desistiu e em vez disso iniciou uma ligação.

— Ei! — Will atendeu, o sorriso claro em sua voz. — Como foi seu dia?

— Tranquilo. Passei a tarde no riacho. E o seu?

— Passei a tarde com os meus sobrinhos, ou seja, foi o oposto de tranquilo. — ele riu e ela o acompanhou, os sobrinhos dele eram pestinhas terríveis e adoráveis. Sentiria falta deles, sentiria falta de toda a família Clark. — Já viu as notícias? 

— Não. — ela fez uma careta — Tenho até medo de ligar a TV.

— Não precisa, aparentemente nós somos gênios das relações públicas, porque o editorial é um sucesso. As fotos ficaram lindas, o talento do James é impressionante. Ele conseguiu encontrar o meio termo entre deixar as fotos divertidas e ao mesmo tempo emocionantes, afinal ainda é um término, né? Por mais que esteja tudo bem entre a gente, ainda é difícil...

— É...

— Bom, o fato é que ele conseguiu encontrar esse equilíbrio. Todo mundo amou. E termos escrito a matéria fez toda a diferença. Os fãs não estão malucos criando um milhão de teorias, já que dizemos tudo o que precisava ser dito. A repercussão foi positiva. As pessoas ficaram tristes, mas felizes por verem que estamos bem, que continuamos amigos. Que sempre vamos ser amigos.

Conversaram mais um pouco, então os sobrinhos de Will começaram a gritar por ele e ele se despediu, indo atender ao chamado dos pestinhas. Anne desligou o celular e se deitou, observando o teto. Não queria pensar no futuro nem em como sua vida seria dali em diante. Só queria viver, um dia de cada vez, aproveitando ao máximo os pequenos momentos, os instantes de paz, os segundos em que tudo estava bem, porque, se a morte de Ben lhe ensinara alguma coisa, fora o quão valiosos eram aqueles momentos.

* * *

Ser apenas mais um rosto na multidão era libertador. Sem ter os olhos do mundo sobre si, Anne caminhava pelas ruas de Nova Iorque com tranquilidade. Os estranhos pareciam menos hostis, a cidade não mais parecia um aquário. Voltara a frequentar o Central Park aos domingos, a ir trabalhar de bicicleta e já não se esquivava a cada vez que alguém erguia um celular em sua direção. Aos poucos a cidade voltava a ser sua.

Redescobrir o amor por Nova Iorque a fazia apreciar ainda mais o contraste entre caos e calma sempre que volta a Hale. Amava a agitação sem fim da cidade que nunca dormia, a sensação de que algo grandioso estava sempre prestes a acontecer, mas amava ainda mais o sossego e a quietude da cidadezinha que chamava de lar. O relincho dos cavalos, o canto dos passarinhos, as conversas à mesa, o som das águas dançando ao longo do riacho. Voltar para casa se tornara um hábito indispensável. Sentada no trem, rodeada por estranhos, os problemas que se faziam gigantes na correria do dia a dia perdiam a significância, não eram mais uma prioridade. 

Havia se afeiçoado à nova rotina, a pegar o trem lotado na sexta-feira após o trabalho. A jantar com os pais enquanto ouvia um relatório detalhado de tudo o que acontecera na pequena cidade durante a semana. A encontrar James no estábulo nos sábados pela manhã, às tardes no riacho e aos domingos sentada aos pés das macieiras. Quando chovia, eles passavam um tempo com os cavalos sob o refúgio do celeiro e depois entravam em casa para um pedaço de bolo com café. Fechados no quarto de revelações, vendo magia acontecer diante de seus olhos, esqueciam-se das horas. 

Às vezes, Anne se arriscava a bater algumas fotos, testando os pequenos truques que James lhe ensinava. Em um desses dias, ao revelarem suas fotografias, enquanto a imagem de um James sorridente — covinhas à mostra e olhos semicerrados, tamanho era o sorriso no rosto dele — ganhava vida no papel, ela sentiu o coração inteiro outra vez. 

Desviou os olhos da imagem e os ergueu até o homem ao seu lado. James a observava com carinho, um olhar que lhe dizia que, pela primeira vez em muito, muito tempo, ele também voltava a sentir o coração inteiro. Muito havia mudado, haviam crescido e se transformado, mas, olhando um para o outro, sem a necessidade de preencher a distância entre eles com palavras, Anne percebeu que algumas coisas não mudavam nunca. Ainda eram Anne e James. Muito havia mudado, mas a essência, as coisas que faziam deles eles, permanecia. E era o suficiente para cicatrizar as feridas do passado e restaurar o amor que um dia havia sido negligenciado. 

James se aproximou e tocou seu rosto, suas respirações se misturando e os corações batendo em um só ritmo cadenciado. 

— Podemos tentar outra vez... — ele disse, uma pergunta que se mesclava a um pedido.

— Não quero tentar. — Anne respondeu. Os olhos verdes deixaram os dela, mas, antes que James pudesse se afastar, ela enlaçou seus dedos aos dele. — Quero fazer dar certo.

Os olhos verdes brilharam e um sorriso se desenhou no rosto de James. As covinhas que ela amava, no sorriso que ela amava, no homem que ela amava. O som de uma música conhecida preencheu o pequeno quarto, vinda de algum canto distante da casa, no que só poderia ser uma peça pregada pelo destino, e eles riram.

And when you smile the world is brighter, you touch my hand and I'm a king. (E quando você sorri o mundo se ilumina, você toca a minha mão e eu me torno rei.) — James cantou, baixinho, segurando o rosto dela em suas mãos, diminuindo a distância entre os dois.

Não se beijavam havia cinco anos, mas foi como se o tempo não tivesse passado. Ainda conheciam um ao outro tão bem quanto conheciam a si mesmos. O beijo, o toque, a sensação. Nada havia mudado e, com isso, veio a confirmação: fariam dar certo.

Your kiss to me is worth a fortune

(o seu beijo vale uma fortuna)

Your love for me is everything.

(o seu amor para mim é tudo.)


Três Anos Depois


Anne abriu os olhos, ainda meio grogue de sono, e se sentou na cama. Franziu o cenho, tentando identificar de onde vinha o barulho desconhecido, mas não teve sucesso. Chacoalhou o homem que dormia, tranquilo, ao seu lado.

— Jamie. — chamou. Ele resmungou qualquer coisa, mas não abriu os olhos, então ela chacoalhou mais forte. — James!

— Está tudo bem? — ele se sentou, sobressaltado, os olhos arregalados em preocupação, e levou uma das mãos à barriga dela. 

— Sim. — sorriu, repousando a mão sobre a dele. — Mas você está ouvindo esse barulho? Parece choro de bebê. 

Ele franziu o cenho, forçando a audição.

— Estou. Mas... — ele olhou para a barriga dela, confuso. — Tenho quase certeza de que isso é impossível.

Anne riu e levantou. 

No ano anterior, haviam voltado à pequena capela rosada em Las Vegas. Ela vestia um vestido branco simples e segurava um buquê de margaridas. Ele vestia um terno, mas não usava gravata. Sorriam como na primeira vez e, quando selaram seus lábios, a pequena capela explodiu com a comemoração de suas famílias e amigos, enquanto, ao fundo, Elvis cantava a mesma canção que cantara quinze anos antes.

A maturidade do tempo e os erros do passado lhes concederam a sabedoria necessária para navegar as tempestades do cotidiano sem esquecer quais eram as verdadeiras prioridades. Os trabalhos da CleanPower já não eram levados para casa e James não mais viajava para onde quer que a próxima fotografia o chamasse. Quando a viagem era mesmo necessária, faziam da viagem de trabalho também uma viagem a dois, uma oportunidade de juntos conhecerem e explorarem novos lugares. E as visitas a Hale, essas continuavam indispensáveis.

— Não é o nosso bebê. — ela disse, calçando as pantufas — Deve ser algum bichinho machucado. Não sei. De onde você acha que está vindo?

James abriu a janela, colocando a cabeça para fora e se concentrando em ouvir o som, então a fechou novamente. 

— Está vindo daqui de dentro. — ele disse, caminhando pelo quarto e indo até o closet.

Anne o seguiu, o som ficando mais alto a cada passo. Caminharam devagar, seguindo o choro. James se abaixou, olhando o cesto onde colocavam a roupa suja, e, em seguida, virou-se para ela com um sorriso sapeca no rosto.

— Não me diga que é um rato! — Anne se preparou para correr e ele riu, estendendo a mão para que ela se aproximasse. 

Pegou a mão do marido, receosa, e olhou dentro do cesto. Olhos azuis arregalados e amedrontados a olharam de volta. Um gatinho, ainda filhote. O corpo branco, as orelhas negras, assim como o longo rabo, e manchas cinzentas em volta dos olhos.

James o pegou com cuidado e, após um breve segundo de hesitação, o gatinho se aconchegou nos braços dele, sentindo que finalmente estava em segurança. Anne sorriu, entendia o sentimento, também se sentia segura e protegida quando James estava por perto. 

— Como você acha que ele entrou? 

— Não sei. — James respondeu — Pela janela do quarto? Estava aberta de tarde. Mas eu acho que é uma menina. 

Anne fez um carinho na cabeça do bichano e a gatinha fechou os olhos, ronronando. Encantada, Anne sorriu. 

— Nós temos uma gatinha. — disse, feliz. 

— Três cavalos, uma gatinha e uma menininha a caminho. Me parece que a família está completa. — um sorriso se desenhou no rosto de James, as covinhas radiantes e à mostra.

A casa em Nova Iorque, a fazenda em Hale. Os passeios com os cavalos pelo riacho, os livros lidos sob a sombra das macieiras. As fotografias espalhadas pela casa, a polaroide emoldurada sobre a lareira. O sótão transformado em um quartinho de revelação e os invernos patinando no Central Park. As alianças de papel lado a lado em uma moldura no quarto e as alianças (singelas, mas de ouro) nos anelares. A gatinha em seus braços e a bebê por chegar. A família estava completa. O final feliz não era um final, era uma vida inteira e, enquanto apreciava cada segundo de cada agora, Anne só podia torcer para que fosse longa, muito longa.

E seria.


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Um comentário

  1. Esse conto da Paula é uma daquelas histórias que te prendem e te fazem enxergar o amor nos detalhes mais longínquos! Faz lembrar que o amor não morre, as vezes ele muda... mas não morre. Parabéns Paula por esse texto magnífico! Espero ler mais trabalhos seus.
    Abraço,
    Jennifer.

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