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22.1.20

[Resenha] O Filho eterno :: Cristovão Tezza


O filho eterno
Autor: Cristovão Tezza
Editora: Record
Páginas: 222
Num livro corajoso, Cristovão Tezza expõe as dificuldades, inúmeras, e as saborosas pequenas vitórias de criar um filho com síndrome de Down. O autor aproveita as questões que apareceram pelo caminho nestes 26 anos de Felipe para reordenar sua própria vida: a experimentação da vida em comunidade quando adolescente, a vida como ilegal na Alemanha para ganhar dinheiro, as dificuldades de escritor com trinta e poucos anos e alguns livros na gaveta, e a pretensa estabilidade com o cargo de professor em universidade pública.


"Queremos dizer a verdade e, no entanto, não dizemos a verdade. Descrevemos algo buscando fidelidade à verdade e, no entanto, o descrito é outra coisa que não a verdade." - Thomas Bernhard

Num registro ficcional de dados autobiográficos, e por isso a citação acima contida no início do livro, Cristovão Tezza se entrega de corpo e alma ao verbalizar seus sentimentos ao descobrir-se pai de uma criança com Síndrome de Down. A nomenclatura usada em 1980 (mongolismo), quando nasce seu filho, Felipe, intensifica os preconceitos desse pai, arrogantemente ignorante, de que aquele mongolóide sequer poderá viver uma vida normal como um ser humano qualquer. Consumido pela vergonha aviltante do fato e a liberdade negada, o desejo alentador é de que o filho, extremamente vulnerável a doenças, não muito viverá.

Narrado em terceira pessoa, Tezza almeja conferir impessoalidade ao texto, se distanciando do que poderia ser uma autobiografia para o que de fato se mostra uma ficção biográfica. É difícil imaginar que um dos mais eminentes escritores brasileiros um dia pôde considerar seu filho um monstro, comparando-o a um lagarto enquanto a criança se arrasta pelo chão engatinhando seus primeiros metros. Nessa toada bem desconfortável o livro se desenvolve; e acompanhamos um estudante de Letras, que se quer escritor, mas nunca escreveu algo de relevante e que o satisfizesse, vendo todas as suas defesas resistirem a concepção de um filho anormal. Muito letrado e culto, nenhum livro jamais lido o preparou para esse momento e a impotência é revoltante para quem tanto compreendeu a literatura.

O arco narrativo se desenrola a partir de um início sombrio, mas que gradativamente conflui num ponto de entendimento paternal, onde pai e filho desfrutam de uma esperança unilateral, já que, Felipe mesmo aos 26 anos de idade em 2006, ainda não a concebe conscientemente como uma relação temporal. É emocionante, assim, acompanhar a evolução do personagem como pai e o consequente abrandamento de suas resistências psíquicas. É com o tempo e a experiência que ele passa a entender as vicissitudes do seu filho e aos poucos destruir a barreira que o impedia de um contato afetivo mais íntimo. Quando, num momento de descuido Felipe desaparece, ele percebe que aquele ser é extremamente dependente dele e que, se antes desejou que ele morresse, agora "a sua ausência é que parece matá-lo".

Somos recompensados pela coragem do autor de se expor dessa maneira. Aliás, é uma fórmula que todos nós adoramos. Determinamos, muitas vezes, um nível de importância maior ao "baseado em fatos reais" em detrimento da ficção. Aqui, os dois elementos se mesclam à intermitência do tempo narrativo no qual o narrador se vê relembrando sua juventude desregrada/anarquista numa tentativa de organizar seus pensamentos confusos derivados da desagradável surpresa de um filho trissômico. Chocante e comovente, O filho eterno é sem dúvidas uma obra-prima da literatura nacional; que não se excede pelo exagero, mas se afirma pela audácia.

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4 comentários

  1. Olá, tudo bem?

    Eu não conhecia este livro e através da sua resenha dá para perceber como ea leitura deve ter sido emocionante. Com certeza quero muito lê-lo, pois irá transmitir experiências de vida. Ainda há muitas pessoas que tratam a síndrome de Down como uma anormalidade. Isso sim é triste. Parabéns pela resenha.

    Bjos

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  2. Que resenha impecável, conheço o livro, mas, infelizmente ainda não li. Essa questão do pai abandonar suas resistências psíquicas dá pano para manga, viu, curiosamente, estou lendo algo similar, um relato de um pai de um filho que morre. Preciso dizer isso, por mais resenhas como a sua nos blogs.

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  3. Olá tudo bem?

    Ainda não conhecia esse livro, mas deu pra perceber o quanto ele te tocou e impressionou. Devo falar também que amei a sua resenha e o jeito que você a conduziu, espero ver mais postagens como essa aqui. Também fiquei fascinada com o tema em cima e como o autor tratou essa síndrome tão delicada como o Down. Com certeza vou ler.

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  4. Olá!

    Esse é meu primeiro contato com esse livro e como autor, não sei se é um livro que me prenderia, já que não é meu tipo habitual, mas achei sua resenha bem interessante. Obrigada pela dica, vou considerar a leitura.

    Beijão
    leitura-terapia.blogspot.com

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