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23.4.20

[Crônica]:: Impressões do cárcere



Tento me manter positivo a despeito das desgraças que em nós ultimamente impera. É um exercício e tanto levando em conta que os dias que se passam não nos oferecem muitas esperanças - e olha que pouco vejo telejornais - e o prognóstico é duvidoso. A falta de rotina, e por rotina me refiro a compromissos funcionais como trabalho, reuniões e escola, é uma das condições que mais descaracterizam o ser humano. A ideia de ter algo para fazer mesmo a contragosto é o que motiva alguém a acordar todos os dias às 5:00 da manhã.

Pensando nisso que tento me organizar enquanto nas ruas só há vírus e poeira. Acordo cedo, preparo meu café e como alguma coisa. Feito o desjejum, me deito na cama e tento ler por uma ou duas horas. Atividade que se impõe penosamente, já que minha concentração é intermitente e minha cabeça não encontra o equilíbrio necessário entre a tranquilidade de poder esquecer a realidade por aquele momento e não esquecê-la de fato. O que me faz trocar de livro uma vez por semana para ver se embalo. O da vez é A guerra dos tronos. História que conheço de cabo a rabo, mas percebo minha necessidade cada vez maior de ler algo fácil ou menos pesado ou menos verdadeiro. Tentei Dostoiévski e Graciliano Ramos; real demais. Após a leitura, vejo se preciso preparar o almoço ou se ainda há o resto da janta na geladeira. Cozinho ou esquento. Me deito novamente e tento ler, mas sempre o sono me impede e a tarde se vai sem eu sequer olhar para um outro ser humano. Depois tento jogar no computador um jogo de tiro qualquer ou card game e logo me enjoo. Parece que tudo cansa rápido, perde logo o sentido. Assisto um filme ou dois e já é hora de dormir novamente. 



Nesse ínterim vejo minha mãe chegar do trabalho - ela é cobradora de pedágio e claro, não para - trocamos algumas palavras mas não muitas porque logo perco a paciência com algo e discutimos. O isolamento me roubou a serenidade e a calma. E cada um se isola dentro dos poucos cômodos do apartamento. Ela a dormir cedo, eu a buscar por algo que me entorpeça. Hoje recebi a notícia de um jovem conhecido morto em um acidente de moto. E da pior maneira possível: com fotos suas debulhado no chão a navegar internet adentro. E dói. Dói a cabeça, cada vez mais frequente por motivos completamente desconhecidos. Dói pensar. Escrever dói. E por que escrevo? Me perguntaram. E por que você vive? Eu devolvi. 




Me sinto encarcerado como se pagando por um crime que sei que não cometi. Tão fácil me enxergo num enredo kafkiano, buscando respostas, sentidos e resgatar uma vida aparentemente longínqua de prazeres e afetos à procura de minha humanidade furtada por mãos invisíveis. A vida imita a arte ou a arte imita a vida? No meu estado de espírito atual fico com a segunda opção. E sei que quando esse momento passar continuaremos a vivê-lo através de músicas, pinturas e livros. Como em A dança da morte do King. A arte imitando a vida. Ás vezes só me resta olhar as estrelas através da janela. Todas muito distantes e ao mesmo tempo tão próximas. Assim como aqueles dias em que eu reclamava do trabalho monótono, das aulas de epistemologia tediosas e o vazio do domingo que me alerta da iminente segunda feira quando começa o domingão do Faustão. 

comentários pelo facebook:

2 comentários

  1. Nossa migo, foi como um tapa esse texto viu? Eu o li e foi tão o momento que estamos vivendo, foi tão espelhado que eu quis chegar e falar "Hey, tô aqui se precisar mesmo que eu esteja meio capengando também hahaha!"
    Enfim, parabéns e força pra gente.

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  2. Pedro, que texto maravilhoso! "Dói pensar. Escrever dói. E por que escrevo? Me perguntaram. E por que você vive? Eu devolvi." Essa parte foi como um soco para mim, a escrita por vezes é mais que uma escapatória em nossas vidas.

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